O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

percorrer Luanda, visitando, um após outro, os lugares que Nuno costumava
frequentar. Reconstruía os passos dele, tanto quanto os conhecia, numa busca
de último recurso. Na maioria dos casos dava com portas fechadas e, quando
assim não era, as pessoas que encontrava já não eram as mesmas de
antigamente. Ninguém tinha ouvido falar de Nuno, ninguém tinha nada de útil
para lhe dizer. Só no Hotel Continental encontrou uma cara conhecida.
Sentou-se durante alguns minutos a uma mesa na desolada sala de jantar do
hotel, à conversa com o chefe de mesa. Tal como ela, o homem deixara partir
o derradeiro avião para Lisboa e estava para ali, perdido num buraco da vida,
sem saber o que viria a seguir, o que aconteceria na segunda-feira seguinte,
quando Angola se tornasse um país independente. Sobre Nuno, lembrava-se
de lhe ter servido uma última refeição na companhia do senhor Dantas, já lá
iam umas semanas valentes, nas suas próprias palavras. Foi como das outras
vezes, disse, não lhes notara nada de diferente. Tinham jantado só os dois,
descontraidamente, duas horas no máximo. Ah, sim, deixaram uma boa
gorjeta e até amanhã se Deus quiser. Mas a verdade é que nunca mais haviam
voltado, nem juntos nem separados. Até pensara que se tivessem ido embora
sem avisar, como toda a gente, de resto. Hoje em dia, já não se viam clientes
habituais no hotel. De maneira que Regina se despediu dele, esperando que
tudo lhe corra bem, e o mesmo para a senhora, e assim ficaram, com uma
vaga certeza de que, mais dia menos dia, haveriam de se cruzar por Lisboa.


No sábado, Regina meteu-se no carro e foi à deriva pela tarde fora. Reparou
que Luanda estava irreconhecível. O lixo tinha deixado de ser recolhido há
muito tempo e acumulava-se nas ruas, montanhas de lixo a crescer todos os
dias e a apodrecer debaixo do perpétuo calor que batia de chapa na cidade,
tornando-se foco de doenças, infestando o ar com cheiros insuportáveis. Na
realidade, não era só o lixo, pois a cidade já não tinha um único serviço
público que funcionasse desde a partida dos últimos portugueses. Com o
comércio fechado e as ruas abandonadas e contaminadas com a porcaria de
todos os dias a crescer assustadoramente, o ambiente intimidava. Não se via
um polícia, apenas militares, e esses só se preocupavam com a guerra. Luanda
poderia arder como a Roma de Nero, pois não restava um bombeiro nos
quartéis abandonados e, se houvesse, também não haveria água e combustível
para os carros de combate ao fogo. Faltavam médicos no hospital à míngua de
medicamentos, as fábricas estavam paradas, as empresas encerradas, as
fazendas abandonadas e o abastecimento de víveres dependente da Cruz
Vermelha Internacional. As casas manter-se-iam vazias e os carros
estacionados sem ninguém lhes tocar até ao arriar da bandeira portuguesa e à

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