O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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A notícia do golpe militar em Lisboa apanhou Nuno desprevenido e, para
falar com franqueza, não o deixou nada satisfeito. Afinal de contas, o seu
negócio dependia da continuação das hostilidades, ou pelo menos da
permanência do exército em bases isoladas nos confins do sertão, onde uma
tablete de chocolate, um tubo de pasta de dentes ou uma revista da Playboy
fossem considerados autênticos tesouros. Nuno era uma espécie de caixeiro-
viajante que pulava com o seu avião de base em base, distribuindo pequenos
carregamentos com artigos muito variados, recebendo em troca um envelope
cheio de notas e uma lista de compras com os pedidos para a próxima viagem.
A sua actividade comercial não tinha nada de oficial, evidentemente, nem
sequer poderia ser considerada legal. Contudo, atendendo a que contribuía
para levantar o moral das tropas e, como nem os próprios oficiais se
abstinham de fazer as suas encomendas, os comandantes das unidades
fechavam os olhos e o tráfico prosseguia a contento de todos.


Nuno pousava o DO-27 nos lugares mais inacreditáveis, por vezes
realizando aterragens milagrosas em pedaços de terra lavrada nas profundezas
da selva virgem, autênticos buracos aplanados pelas máquinas de engenharia,
que ele distinguia do céu pela característica cor avermelhada da terra no meio
de uma mancha verde e que aproveitava ao milímetro para não se esmagar
contra uma linha de árvores no fim da pista que não era pista, mas tão-
somente uma ridícula faixa de terra onde só um louco suicida ou um tipo
destemido e muito determinado a receber envelopes cheios de notas é que se
atrevia a aterrar. Mas ele fazia-o, atirava com o avião para a pista, embatia
pesadamente no solo, saltitava como um passarinho tonto a tropeçar
desajeitadamente no terreno acidentado, até se imobilizar. Descarregava a
tralha toda, recebia o pagamento e a lista de compras, dava a volta, puxava o
motor ao máximo, saía disparado por ali fora, pelo meio de uma nuvem
vermelha de poeira seca para, no último momento, fazer novamente o milagre
de tirar as rodas do chão, levantar voo a pique, rasar a copa das árvores,
ganhar altitude e, dali a pouco, não ser mais do que um pontinho
imperceptível no imenso azul do céu.


Com isto, Nuno fizera-se um piloto lendário, sobejamente conhecido como
o tipo doido que aparecia do nada no dia e à hora previstos — mais coisa
menos coisa — e aterrava num espaço de coisa nenhuma. Este género de
acontecimento acabava por constituir uma distracção para a tropa acantonada

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