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Foi enviado um transporte adequado a casa de Cristiane para levar as telas à galeria. André
declarou solenemente que as outras exposições em que andava empenhado passavam para segundo
plano. Doravante, só lhe interessava montar um happening memorável com as obras de João Pedro,
algo que desse que falar, que mexesse com a cidade! André era excessivo por natureza e, quando
tinha matéria-prima para dar asas à imaginação, tornava-se ferozmente criativo. Agora, estava de
todo, ligado à corrente, com uma energia impossível! Quis arrumar as telas na galeria, mas teve um
ataque de histeria, o espaço não servia, não fazia justiça à grandiosidade das telas. Chamou João
Pedro, convidou-o para um almoço requintado no Gambrinus e aí, sentados em confortáveis cadeiras
de couro, à frente de uma mesa correcta, coberta por uma toalha branca, com guardanapos de pano no
colo, explicou-lhe a sua ideia enquanto bebiam um vinho de luxo.
— Quero fausto, quero brilho, quero encenação, percebes?
— Encenação, hem? Vamos a isso! — exclamou João Pedro. Já bebera meia garrafa e a excitação
de André contagiava-o, divertia-o. Fausto, brilho, encenação, nem mais, que se fizesse um grande
carnaval! E que viesse mais uma garrafinha daquele néctar.
O marchand, porém, brotava ideias, pretendia estabelecer uma ligação provocadora entre o tema
da exposição — os retratos eróticos da bela Cristiane — e o cinema. Enfim, tinham ali, à Rua das
Portas de Santo Antão, um cinema desactivado onde antes se exibiam filmes pornográficos, o Odéon.
Era um espaço enorme, deliciosamente decadente. Podiam usá-lo. As cadeiras da plateia tinham sido
retiradas há muito, restava a sala, que ele deixaria tal como estava, criando um contraste fascinante
entre a estrutura ultramoderna da exposição — os acrílicos, os cromados, as luzes — com o velho
esplendor degradado do cinema.
João Pedro só se ria. A pornografia parecia-lhe muito bem, pôs-se logo a desfiar recordações da
juventude. Lembrava-se perfeitamente de se ter baldado às aulas uma vez para ir com outros rapazes
ao Odéon ver um par desses filmes manhosos em sessões contínuas. Não tinham história, era só gente
a foder e, entre um filme e o outro, havia homens a masturbar-se discretamente nos urinóis.
— Uma javardice!
— Sim, mas estás a falar da época em que a sala entrou em decadência. Sabias que o Odéon tem
mais de oitenta anos?
— Não sabia.
— Aquele cinema é uma jóia da Art Deco!
— Ah, sim?
— Sim! É um crime a câmara não o recuperar.
— Uma pena, realmente — contemporizou João Pedro.
— Nos seus tempos áureos, o Odéon era uma sala de espectáculos conceituada. O Salazar tinha
lugar cativo num dos seus camarotes.