Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

pensava que João Pedro tinha um irmão gémeo e enviara-o na vez dele, ou talvez tivesse batido com
a cabeça e não se lembrasse de quem era, porque já lidava com ele há muito e aquele não era,
definitivamente, o João Pedro que conhecia.
Mas o pintor, o artista, o homem do momento, erguia a voz, fazia o seu discurso inspirado e da sua
boca brotava um chorrilho de palavras entusiasmadas, mas um pouco desconexas e entarameladas.
Em suma, João Pedro pretendia dizer aos presentes que o corpo da mulher era a mais bela peça de
arte — fez umas aspas com os dedos das duas mãos e granjeou algumas gargalhadas espontâneas —
que um pintor podia ter o privilégio de retratar, e certamente todos os presentes concordariam que,
sendo essa mulher Cristiane — fez uma vénia a Cristiane —, então, o pintor podia almejar a
perfeição. Ouviram-se palmas, hurras, assobios. João Pedro levantou os braços a pedir silêncio,
continuou, dizendo que se não lograra alcançar a perfeição na tela a culpa não podia ser atribuída a
Cristiane mas apenas a si, que, porventura, não soubera estar à altura da extraordinária beleza dela,
porque ela era realmente a mulher mais bonita que ele conhecia. Cristiane sentiu-se ligeiramente
incomodada com os elogios excessivos, ainda que bem intencionados, porque, se ele continuasse
com aquele discurso, começaria a ter a sensação de que se tornara uma espécie de jarra valiosa e já
não a mulher de corpo e alma que era. Cristiane gostava de ser elogiada, mas irritava-a solenemente
que a considerassem um pedaço de carne apetecível e fútil. Mas convenhamos, o intelectual ali era
João Pedro, ela apenas estava representada nas telas por ser bonita.
De qualquer modo, João Pedro continuava a perorar sobre a impossibilidade de se alcançar a
perfeição na arte e explicava que retratara o corpo despojado de distracções porque procurara
capturar uma expressão que representasse a alma nua, defendendo que a sexualidade, mesmo a mais
explícita, como era o caso, não devia ser tabu na pintura, e às tantas, já estava um bocado perdido na
sua oratória e André começou a pensar que se antes tinha de se preocupar por ele ser um bicho do
mato, agora precisava de lhe refrear a verborreia, e, para o salvar do embaraço, interrompeu-o no
fim de uma frase com pouco sentido:
— Senhoras e senhores, temos homem, temos obra, temos génio! — apontou para João Pedro. —
Uma salva de palmas à inteligência!
A um sinal de André, entraram empregados de libré em fila indiana, com bandejas carregadas de
taças de champanhe, e brindou-se ao pintor.
João Pedro estava eufórico com o sucesso, falava copiosamente com toda a gente, muito bem-
humorado, muito empolgado. Para este estado de ânimo contribuíra, definitivamente, o jantar no
Gambrinus, antes de seguirem para a inauguração, que ele exigira a André.
— Queres repetir?
— Quero repetir!
— Levei-te lá a almoçar e agora não queres outra coisa — queixara-se André.
— Confesso, estou a aburguesar-me e estou a gostar.
— E a sair-me caro!
Tinham pedido o mesmo vinho tinto da última vez, escolha impecável, excelente colheita, de marca
insuspeita, que João Pedro adorara e, bem, exagerara um pouco na bebida e agora andava pela
exposição numa roda-viva, cheio de espírito, a sentir-se leve e encantado por ser o centro das
atenções.


André escoltava-o pelo salão, sempre pronto a intervir com graça e savoir-faire caso João Pedro
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