Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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De há um tempo para cá, João Pedro deixara de se preocupar com tudo em geral por tudo em geral
lhe parecer relativo e, no fundo, desmerecedor de importância. Um livro importante, uma sinfonia
importante, um quadro importante, não lhe pareciam realmente importantes. Numa determinada altura
da sua vida, quando mais jovem, João Pedro obrigara-se a ler livros obrigatórios que detestava, a
ver filmes obrigatórios que o aborreciam de morte, a visitar museus obrigatórios que nada lhe
diziam. Hoje em dia, estava-se nas tintas para as coisas obrigatórias. Até os seus próprios quadros,
dos quais agora os críticos e a imprensa diziam maravilhas e falavam como obras importantes,
superiores, obrigatórias , lhe pareciam relativamente indiferentes. Como poderia pintar outros tão
bons como aqueles, não lhes dava a importância que, porventura, teriam. Mas não eram só as obras
de arte obrigatórias que lhe suscitavam essa sensação de relatividade, era quase tudo. A arte, a
religião, o casamento, a política, a carreira profissional e por aí fora. Sempre que pensava em algo
importante ocorria-lhe esta perplexidade: Mas é importante porquê?


Passara, portanto, de um extremo ao outro, dado que, no passado recente, João Pedro era perito em
preocupar-se com a simples previsão de problemas que, normalmente, nem chegava a ter. Antes,
sofria por antecipação mas agora nada o afectava. Trocara o hábito psicologicamente arrasador de se
martirizar com questões insignificantes pela mais completa e fútil abstracção. A tensão do estado de
alerta permanente cedera lugar à descontracção exagerada. Estes dois estados de alma opostos
tinham em comum uma interpretação errada da realidade, João Pedro tinha tendência para ler
excessivamente os sinais da sociedade. Ora se sentia ameaçado e reagia com grande desconfiança até
às situações mais inocentes, ora menosprezava completamente a grave condição social. A vida
costumava ser dolorosa mas passara a ser divertida, porque João Pedro sofria de uma sensibilidade
doentia que não conseguia evitar, mas, de um dia para o outro, tornara-se simplesmente insensível,
como se tivesse tomado uma vacina contra a mania da perseguição e estivesse a experimentar os
efeitos secundários do tratamento.


Essa extraordinária transformação provinha do seu recente dom para sonhar o futuro, mas
acentuara-se com a sensação de facilidade associada ao sucesso. De repente, João Pedro era a maior
revelação nacional e recebia tantos pedidos de entrevistas que André reservou uma suíte num hotel
de luxo, onde concedeu a cada órgão de comunicação social um tempo rigorosamente cronometrado,
ao estilo de Hollywood. E ali estava ele, muito bem disposto, numa poltrona confortável, com um
grande cartaz atrás de si que reproduzia um dos seus quadros escandalosos que tanto apaixonavam o
país, a responder aos jornalistas com palavras fáceis que lhe brotavam da boca naturalmente e com
uma desfaçatez que roçava a ingenuidade.
— Podemos dizer que a sua pintura se baseia na simulação de uma realidade erótica visceral? —

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