Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

pagasse uma divulgação assim tão ampla.


Os seus quadros tinham sido ferozmente disputados por gente endinheirada, coleccionadores,
investidores. A repugnância propalada dos inflexíveis guardiões da decência era olimpicamente
ignorada pelos negociantes e desprezada por uma legião de fãs encantada com a frescura
provocadora da pintura de João Pedro. E tudo isto acontecera quase instantaneamente, porventura,
porque o país, pobre e deprimido, à míngua de estímulos positivos que o distraíssem da crise,
entusiasmava-se sobremaneira com os seus heróis. Nunca se dera tanta atenção aos escassos ídolos
portugueses que dominavam o mundo no desporto, em algumas empresas internacionais ou no meio
da alta finança. Estes exemplos de sucesso alimentavam a esperança do homem comum, o qual, com
crise ou sem crise, jamais seria igual a eles. Mas era bom sonhar. Ora, subitamente surgira João
Pedro com uns quadros belos e escandalosos, a provocar os mais conservadores com uma suprema
insensibilidade, quase distraído na sua impassibilidade, e a nação, que via nele um motivo de
orgulho, ganhara um novo herói para venerar. Paradoxalmente, no seu caso, a situação económica
difícil que se vivia revelava-se uma vantagem.


O país adorava João Pedro e ele, perplexo, pensava que parecia impossível que tivesse esperado
tanto tempo por isso, porque, de repente, só havia facilidades, elogios rasgados, rios de dinheiro. Até
a má publicidade era boa publicidade.


O estúdio de Carol ficava a meio de uma rua esconsa, só para peões, ao Chiado, já a fugir do
bulício alegre do centro movimentado do bairro. João Pedro começou a descer as escadinhas, com o
nome solene Santo Espírito da Pedreira, que conduziam à Rua do Crucifixo, na Baixa, e deu com uma
porta discreta à direita, que só acreditou ser aquela que procurava porque o número por cima batia
certo com a indicação que Carol lhe dera. Empurrou a porta sem precisar de tocar à campainha, pois
encontrou-a encostada. Manteve-a aberta até descobrir o botão da luz. Uma lâmpada empoeirada,
suspensa de um simples fio eléctrico, iluminava timidamente uma escada de madeira tosca, muito
estreita, que começava logo à entrada. Não havia átrio nem elevador. Subiu cauteloso ao primeiro
andar. Os seus passos pesados fizeram ranger os degraus mal nivelados e demasiado curtos para os
sapatos enormes que os pisavam. João Pedro, muito grande naquele espaço amesquinhado, teve a
sensação de se aventurar numa casinha de bonecas.
Parou no patamar, soltou um suspiro de contida excitação, tocou à campainha. Ouviu passos, o
trinco abriu-se, Carol assomou à soleira da porta.
— Olá! — exclamou, alegremente. — Bem-vindo ao meu pequeno estúdio. — Entra.
João Pedro entrou e seguiu Carol por uma nova escada — esta em caracol —, ainda mais estreita
do que a do prédio, e desembocaram numa sala rectangular sem janelas, surpreendentemente
espaçosa. O estúdio, mais pelo comprido, afinal, não era assim tão pequeno como ela sugerira.
Emergia-se pela escada no canto mais afastado da zona de trabalho e via-se o tecto negro, o chão de
soalho, quase todo desimpedido. A sala estava parcialmente mergulhada na penumbra, num contraste
entre o lado às escuras da escada e o outro extremo onde estava montado o cenário para fotografar.
Esse canto fora todo forrado com uma capa branca que cobria o soalho, as paredes e o tecto, sendo
arredondada na ligação entre o chão e a parede mais afastada. O objectivo era criar o fundo infinito ,
que permitia dar o máximo destaque ao objecto fotografado. No centro, profusamente iluminado por

Free download pdf