Mas Carol tinha os seus limites, já recusara ofertas apetecíveis da GQ e de outras publicações
menos prestigiantes e mais duvidosas para pousar sem roupa, assim como rejeitara liminarmente
convites para participar em programas de televisão como A Casa dos Segredos. Não é que fosse
pudica ou envergonhada, mas geria a sua carreira criteriosamente e o instinto dizia-lhe o que devia
aceitar ou não. Só fazia apostas requintadas e não condescendia com a vulgaridade, porque sabia que
um passo em falso poderia deitar a perder uma posição que demorara anos e lhe dera muito trabalho
a conquistar.
Quem a conhecesse, hoje em dia, poderia ficar com a impressão errada de que a vida de Carol fora
sempre fácil, uma ascensão meteórica e sem obstáculos. Era o género de equívoco que ela
fomentava, porque entendia que não era do seu interesse que se soubesse donde vinha e o que fizera
para subir na cadeia alimentar. Escondia tudo, até os apelidos vulgares que herdara dos pais. Toda a
gente a conhecia apenas por Carol, como se ela própria fosse uma marca registada, sem nomes de
família, sem referências pessoais. Defendia-se insensivelmente de todas as tentativas de assalto aos
muros de segredos que erguera em seu redor com grande determinação.
Carol procurava convencer-se de que a sua atitude não tinha nada de censurável e era tão só o
exercício do direito à privacidade. Contudo, debatia-se muito com um sentimento de culpa que
insistia em pairar sobre a sua cabeça, como se uma vozinha acusadora num canto do cérebro teimasse
em lembrá-la de que renegara injustamente as origens.
O enredo fora sendo tecido ao longo dos anos, sem um plano preconcebido, sem uma decisão
consciente de seguir um guião para construir uma mentira. Quisera melhorar a sua imagem, apenas
isso. Começara por deixar cair o sotaque provinciano. Ainda na universidade, copiava a maneira de
falar e de vestir das colegas mais sofisticadas. Estudava-lhes os gestos, as expressões, o bom gosto.
E era competente nisso. Mais depressa se pensava que Carol viera de Cascais do que de uma
aldeiazinha insignificante do interior de Coimbra. Ninguém diria que o pai dela trabalhava como
caseiro de uma quinta senhorial e que a mãe amanhava a pequena horta nas traseiras da casinha quase
indigente onde Carol crescera. Era gente simples, à beira da pobreza, que gastara todas as poupanças
para a filha mais velha se tornar médica. O dinheiro não chegara para as duas, e Carol nunca
perdoara a irmã por não a ter ajudado depois de se formar e começar a trabalhar no hospital.
Carol fora para Lisboa estudar, mas tivera de arranjar um emprego numa loja de fotografia para
pagar a faculdade e um quarto numa pensão. E, afinal de contas, esse emprego e uma máquina
fotográfica barata, que o seu pai lhe oferecera como se lhe transmitisse o seu maior tesouro,
definiram a vida dela.
Carol era um produto da sua circunstância. Primeiro, interessou-se pela fotografia porque o pai lhe
pusera uma máquina nas mãos e porque trabalhava numa loja onde manuseava milhares de imagens,
ainda que por obrigação. Se não tivesse de trabalhar, provavelmente nunca teria descoberto a sua
verdadeira vocação. Mas se não estivesse na universidade, talvez não tivesse chegado a descobrir
um caminho para desenvolver essa vocação.
Carol levava a máquina para as aulas — a partir de certa altura, não se separava dela — e, nos
intervalos, fotografava os colegas, a quem oferecia os retratos. Contudo, como o seu trabalho era
apreciado e ganhou fama na universidade, rapidamente passou a ser convidada para registar todos os
eventos académicos. E ao fim de pouco tempo, descobriu que podia ganhar dinheiro com o que até