Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Nunca ia a casa, de resto, deixara de pensar na aldeia dos pais como tal. Agora, o lar de Carol era
o apartamento no Chiado. Reflectindo sobre a obstinação de Carol em isolar-se da família, ocorre-
nos uma perplexidade: a obsessão de ascender socialmente, justificava que ela escondesse dos
amigos actores a família? Afinal de contas, uma boa parte deles, senão a maioria, provinha
igualmente de famílias da classe média. Nessa época, Carol não tinha acesso ao círculo
extremamente reservado daquela classe realmente exclusivista, formada por clãs familiares, que, não
obstante um inconfessado fascínio pela gente famosa, olhava com severa altivez os que não
pertenciam, por direito de nascença, ao grupo social dos que se autodesignavam, entre eles, bem
entendido, pelo sobranceiro epíteto Pessoas como Nós.
Com efeito, se Carol reconhecesse perante os amigos as suas origens modestas, certamente não
seria ostracizada do grupo, pois muitos deles teriam uma história semelhante para contar.
A intenção de Carol não era tanto esconder a família, mas ignorá-la ostensivamente por razões de
que não se orgulhava.


A recordação mais antiga que Carol tem da sua infância, a primeira memória dela própria enquanto
criança, reporta-se a um tempo em que ainda não frequentava a escola. Teria uns quatros anos. Vê-se,
muito pequenina, de vestido, a correr atrás do pai ou a pedalar num velho triciclo, por caminhos de
terra estreitos entre árvores frondosas. Supõe que o pai a deixava acompanhá-lo enquanto cumpria as
suas obrigações de caseiro, as quais implicavam andar pela quinta que estava ao seu cuidado. Enfim,
não seria sempre, mas era frequente isso acontecer. Havia dias em que o pai levava a máquina
fotográfica e tirava retratos às árvores, aos campos, à ribeira que atravessava a quinta. E também à
filha. Ela gostava de fazer poses e sentia uma enorme excitação quando, mais tarde, o pai lhe
mostrava as fotografias. Carol adorava-o por várias razões: porque ele a acarinhava como ninguém;
porque lhe dava toda a atenção que ela solicitava; porque lhe fazia muita companhia e nunca lhe
ralhava. Lembra-se de o pai a vestir de manhã, de lhe preparar o pequeno-almoço, de saírem juntos e
a levar pela mão até ao portão da quinta, que ele abria com uma chave enorme, deixando-a passar à
frente a correr para um triciclo que ficava arrumado debaixo do alpendre da casa das ferramentas.
Não se lembra de a mãe tratar dela. Só se recorda de ver a mãe sempre preocupada com a filha
mais velha. A mãe levava a irmã de Carol à escola, ia buscá-la, vigiava-a ao fim da tarde para se
certificar de que fazia os trabalhos de casa, sentada à mesa da sala de jantar. Normalmente, se Carol
estava presente, era como se não existisse para ela. Ou a ignorava, ou, se Carol andava à sua volta a
chamar por ela, enxotava-a com gestos bruscos.


A memória de infância mais forte que tem da mãe é da sua voz ríspida e da sua eterna impaciência,
que contrastava flagrantemente com a enorme cumplicidade com a irmã de Carol. Desde que se

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