escapar em salva-vidas atirados às ondas, que se voltavam, derramando dezenas de homens sem
esperança num oceano escurecido pela tempestade. Era uma cena impressionante, realista, brutal.
Desenhava agora as expressões assustadas dos náufragos, um trabalho meticuloso, de grande
precisão, dado tratarem-se de figuras minúsculas.
A mão ficou suspensa no ar e o pincel a centímetros da tela. João Pedro cismava. Estava
perturbado e não adiantava pretender que não se passava nada se nem sequer conseguia concentrar-se
no trabalho. Coisa rara nele. Já lhe acontecera deixar de sair com os amigos para ficar em casa a
pintar, já passara fins-de-semana inteiros fechado no ateliê, trabalhando dia e noite, dormindo apenas
o indispensável, obcecado a pintar. Só não faltava às aulas, que eram sagradas, até por versarem
sobre o mesmo tema. Quando se entusiasmava com um quadro nada mais lhe interessava.
A imagem de Clara impunha-se na sua cabeça, e não tanto por se sentir apaixonado — como podia,
se acabara de a conhecer? — ou por considerá-la particularmente fascinante, mas por um motivo bem
mais profundo e marcante e, esse sim, incontornável.