à luta. Ela não hesitava, não tinha medo, não havia nada que a impedisse quando era necessário
decidir. Carol ia buscar a energia insuperável que a caracterizava à alma indómita que desde menina
a fazia avançar a direito, sem se deter com dúvidas existenciais ou com as perplexidades naturais
que o decoro impunha. Era certo que já se arrependera em diversas ocasiões por não ter sido mais
contida e mais ponderada, mas preferia uma decisão errada a não decidir coisa nenhuma.
Um pensamento clássico nela: Faço, não faço? Olha, faço e seja o que Deus quiser. Deus não era
para ali chamado, senão como figura de retórica, evidentemente, pois Carol não permitia que lhe
dissessem o que devia ou não fazer, e nisso incluíam-se os condicionamentos ditados pelas regras
sociais ou até pelas leis divinas. Restava apenas a sua consciência. Carol era, por definição, um
espírito livre, imprevisível, intempestivo. Aprendia com os próprios erros, caía, levantava-se,
chorava, limpava as lágrimas, encolhia os ombros orgulhosa, dizia quero lá saber! Seguia em frente.
Mas, atenção, quando falamos de Carol não nos referimos a uma daquelas pessoas presunçosas que
afirmam a toda a hora que dizem sempre o que têm a dizer, que ninguém as cala, que não admitem
afrontas, e por aí fora, num chorrilho de frases tão arrogantes quanto inconsequentes. Não, Carol não
dizia que com ela ninguém brincava, nem arvorava a típica sobranceria dos espíritos fracos que se
defendem ameaçando; Carol parecia encantadoramente frágil, mas era, na realidade, determinada e
muito, muito difícil de quebrar.
Nessa noite, Carol bateu à porta de João Pedro de garrafa de champanhe em punho, com um
laçarote no gargalo.
— Vamos festejar! — propôs-lhe quando ele abriu a porta.
João Pedro teve um sorriso idiota.
— O quê? — perguntou.
— Faz uma semana que me saltaste para cima no meu estúdio.
— Pois faz — disse, estupidificado com a surpresa.
Carol ergueu as mãos e a garrafa em sinal de expectativa.
— Então?
Ele abanou a cabeça, desarmado.
— Entra — convidou-a, afastando-se para lhe dar passagem.
Foram para a cozinha, João Pedro tirou duas flûtes do armário, Carol fez saltar a rolha da garrafa e
serviu o champanhe. Sentaram-se frente a frente, ao balcão do centro da cozinha. Ela ergueu o copo.
— Que o nosso desejo nunca acabe — disse, fazendo o seu brinde.
— Ámen — anuiu João Pedro, sem compreender exactamente o que ela pretendia dizer.
Beberam. E continuaram a beber até a garrafa ficar vazia e abrirem outra de vinho branco, não sem
antes colocarem uma terceira no frigorífico, não se desleixando para o caso de ainda terem sede
quando aquela acabasse. O que veio a suceder. Entretanto, João Pedro encheu-se de brios culinários,
pôs um avental ao peito e dedicou-se a confeccionar um empadão de puré.
Levaram para a sala de jantar a travessa fumegante, os copos cheios, a garrafa de vinho, pratos e
talheres. Mas como João Pedro não aguentava muito a bebida, já foi para a mesa com os sentidos
bastante alterados. Sentia o espírito leve, agradavelmente enevoado, ria com gosto. As preocupações
que há pouco o alquebravam evaporaram-se e Carol voltava a instilar-se nele, suscitando-lhe uma