52
O quadro gigante de João Pedro teve uma tremenda repercussão mundial, mas, como a maioria dos
sucessos globais, também este foi inesperado e resultou, em grande medida, de circunstâncias
fortuitas. Ao arrepio das intenções de André, que se propunha vendê-lo de imediato, João Pedro
recusou-se terminantemente a desfazer-se dele.
O marchand foi buscá-lo ao hospital, onde esteve internado vinte e quatro horas, e levou-o a casa
no seu carro. Antes de lhe darem alta, os médicos recomendaram-lhe alguns dias de descanso
absoluto. O diagnóstico fora peremptório, João Pedro sucumbira de exaustão por excesso de trabalho
e apresentava sintomas de depressão. De modo que saiu do hospital medicado e, ainda que o seu
estado de saúde não exigisse cuidados de maior, foi levado ao carro numa cadeira de rodas e, uma
vez sentado, deixou-se ficar a olhar em frente, apático e sem reacção. André sentia-se culpado por
não o ter levado a sério durante o almoço em que João Pedro tivera necessidade de desabafar sobre
a fase difícil que estava a atravessar, mas, caramba, a situação fora excessivamente hilariante, como
poderia prever um desfecho assim tão dramático? Porém, agora penalizava-se, tinha sido uma besta,
não, fora de uma insensibilidade boçal! Mas agora procurava redimir-se, havia que tratar do amigo,
ir buscá-lo ao hospital, instalá-lo o melhor possível, garantir-lhe uma convalescença com todo o
conforto e, sobretudo, não o incomodar com assuntos de trabalho. Mas André estava eufórico, a
fervilhar de ideias, já via aquele quadro enorme pendurado em catedrais de cultura. Enfim, não se
conteve.
— Como te sentes? — perguntou-lhe ao entrar no carro.
João Pedro não lhe respondeu. Aparentemente, nem se inteirou da presença de André ao seu lado.
Permaneceu impávido, de olhar fixo para lá do pára-brisas, como que ausente. André observou-o um
momento, um fino fio de baba escorria-lhe pelo canto da boca para a barba selvagem de eremita. O
marchand passou-lhe a palma da mão à frente da cara na esperança de quebrar o encanto. Nem
piscou os olhos. Por instantes, André ponderou se não deveria voltar atrás e questionar os médicos,
se não se teriam precipitado ao dar-lhe alta, mas depois encolheu os ombros, colocou-lhe o cinto de
segurança, pôs o carro a trabalhar, arrancou.
— João Pedro, sentes-te bem? — insistiu, enquanto manobrava para sair do parque de
estacionamento. Não obteve resposta. — Sabes que vi o teu novo quadro, certo? Não estive a
bisbilhotar, nem nada disso, mas é tão grande que seria impossível não o ver. Aliás, não estou a dizer
que é grande por causa do tamanho, é uma obra maior, com letra grande, entendes? Olha, até me
vieram as lágrimas aos olhos. João Pedro, nem sei o que dizer, fiquei tão... tão extasiado que não
consegui parar de olhar para ele durante uma hora. Agora, é assim, aquele quadro vai fazer de ti o
pintor do ano. Do ano não, do século! Temos muito trabalhinho pela frente, meu caro, é preciso
arranjar um espaço à altura do quadro para o expor. Tem de ser um espaço nobre que lhe faça justiça.
E quem o comprar, vai pagar uma fortuna por ele, ai isso te garanto, vais ficar rico!