Em dez anos, o Facebook tornara-se o símbolo da globalização, o mundo árabe revoltara-se pelo
Twitter, Barak Obama anunciara a morte de Bin Laden, a economia americana rebentara como uma
bolha, e em Portugal a crise era maior do que o país e não havia receitas milagrosas para a resolver.
Aliás, a febre da austeridade, depois das falências dos bancos e das crises orçamentais, levara a que
a maior parte da Europa não estivesse muito melhor. Enfim, o mundo mudara. Só João Pedro
continuava impassivelmente a pintar marinhas como se o tempo não passasse por ele e parecia imune
aos humores azedos da economia e aos efeitos nefastos de uma década tumultuosa. Era o mesmo João
Pedro do início do casamento, agarrado aos pincéis no quartinho do andar de cima que lhe servia de
ateliê, concentrado na tela, esquecido do resto do planeta.
Ele deixava a responsabilidade da casa e a educação dos filhos para Clara. Tendia a alhear-se, a
viver apartado da realidade, caindo paulatinamente num auto-isolamento crescente. Não se tratava
somente de dedicação febril ao trabalho, mas de algo que João Pedro não verbalizava por nem
sequer ter plena consciência disso: a segurança que lhe dava o quartinho das tintas, como Clara lhe
chamava — depois, numa fase mais amarga, passou a chamar-lhe sarcasticamente o quartinho do
estás-te nas tintas.
Com efeito, João Pedro afastava-se da realidade porque esta nunca lhe agradara. Receava o
convívio social e o julgamento público. No passado, a decisão de se tornar pintor parecera-lhe uma
escolha natural, compatível com o talento, e também porque pintar se tornara uma paixão a que se
dedicava com gosto e entusiasmo. Mas havia outra razão. Já nessa época tinha a certeza de que só
por extrema necessidade é que iria trabalhar para uma empresa. Qualquer actividade que o obrigasse
a relacionar-se com outras pessoas, a formar equipa com colegas de trabalho, representaria um
enorme sacrifício. Por isso, fora lógico escolher o caminho solitário. Fechado em casa, João Pedro
não tinha de se preocupar com o que as pessoas pensavam ou diziam dele, estava a salvo de
comentários insultuosos e assédios desagradáveis de gente incapaz de conviver com a diferença.
Ele próprio desanimava quando se via ao espelho, de modo que se sentia mais confortável sozinho
no seu retiro. Havia naquele quartinho um alegre desleixo onde se respirava liberdade. Não tinha
arrumação, ali não se faziam limpezas, o pó acumulava-se numa confusão de telas encostadas à
parede de qualquer maneira; manchas coloridas salpicavam o chão de tintas recentes sobre outras
secas mais antigas e irremediavelmente entranhadas no soalho esbranquiçado por falta de verniz. Até
os vidros da janela estavam tão sujos que só se via bem para fora quando ele a abria para arejar o
ambiente asfixiante das tintas e dos diluentes de terebintina e linhaça. Todo o ateliê era uma bela
anarquia de telas, cavaletes, espátulas e pincéis, latas de tinta, páginas amarelecidas de jornais,
trapos rasgados e cotões de algodão. Nem João Pedro, com a sua roupa de trabalho, calças de ganga
e camisolas manchadas de todas as cores, destoava da desordem normal das coisas.
O resto da casa era bem diferente. Moravam num duplex espaçoso num largo retirado e tranquilo
do Restelo, que tinha as suas árvores, o seu bocadinho de verde, e permitia que descansassem do
quotidiano trepidante da cidade. Adquiriram a casa antes do abalo telúrico que atingira o mercado da
habitação e, nessa altura, pensaram que faziam um bom investimento. Posteriormente, o pagamento
mensal ao banco começou a pesar-lhes nas contas, por causa dos cortes no salário de Clara, forçados
pelos impostos inesperados inventados à pressa pelo governo para satisfazer os credores
internacionais, e da queda nas vendas dos quadros de João Pedro. Havia uma crise económica a