Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

Ela aparece na base da escada, olha para cima e encara-o de mão na cintura, com aquele seu ar
agastado de quando ele a desconcerta.
— Querido, tens os óculos na cabeça.
João Pedro levou a mão à cabeça.
— Olha, pois estão. Que estupidez. — Sorri de embaraço, põe os óculos, volta para o ateliê.


Ele fazia muito aquilo, porque só usava lentes de ver ao perto, e, se não precisava dos óculos,
pendurava-os na cabeça. Já era naturalmente distraído e esquecido, mas, nessas alturas ficava
obtuso.
Nesses dias que antecediam a inauguração, Clara enchia-se de tolerância e preparava-o para o
inevitável.


— Que seca, porque é que tenho de ir? —, refila João Pedro durante o jantar.
Ela demora-se a mastigar a última garfada, responde com naturalidade:
— Porque é a tua exposição, são os teus quadros que as pessoas vão lá ver.
— Exacto, as pessoas vão ver os meus quadros, não me vão ver a mim.
— Mas gostam de ser recebidas por ti, falar contigo, de comentar o teu trabalho. Se não estivesses
lá, provavelmente, não ia ninguém.
— Claro que ia.
— Hum-hum, não me parece.
— E depois, ter de aturar o André dá-me cabo da cabeça.
— Querido, o André é o teu melhor amigo.
— É agora! Imagina, aquela bicha o meu melhor amigo.
— É ele que te organiza as exposições, que vende os teus quadros. Bem podes pensar nele como o
teu melhor amigo.
João Pedro faz um esgar de repulsa, recomeça a comer, remete-se a um silêncio amuado.


Ele era homofóbico e detestava o dono da galeria, que lhe dava o braço e tratava-o por «meu
querido». André conhecia toda a gente que interessava e arrastava para as inaugurações uma
multidão de colecionadores endinheirados. Enganchava o braço no de João Pedro e levava-o galeria
fora, de sala em sala, muito excitado, muito exagerado, soltando guinchos de contentamento,
espalhando alegria e charme pela noite, fazendo da inauguração o acontecimento do ano. Ao lado de
André, João Pedro embatucava, sorria apalermado e deixava-o fazer a conversa, divertir os
convidados com piadas ligeiras ou tornar-se subitamente sério e recomendar-lhes este ou aquele
quadro. Com os verdadeiros entendidos não se atrevia a tanto, calava-se, respeitava os seus
critérios; com os diletantes divertia-se à grande. «Vou vender um quadro àquela tonta», segredava a
João Pedro e aproximava-se dela de braços abertos, a fazer a festa. Beijava a tonta , apresentava-a a
João Pedro, convencia-a a levar aquele quadro maravilhoso que ficava a matar na sala dela por ter
as cores a condizer com os maples. João Pedro ficava doente, ruborizava, não sabia onde se meter.
Acabava a noite revoltado, miserável, a ferver. Regressava a casa indignado, a prometer sangue!


— Vou retirar os quadros das mãos daquele mercenário. E é já amanhã, vou à galeria e trago-os
todos!

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