importância à falta de beleza física do marido, mas ele desenvolvera uma inibição muito grande que
o constrangia. Clara não conhecia o seu passado traumático, porque ele não lhe contava nada.
Porventura, se João Pedro desabafasse com ela em vez de lhe ocultar o motivo do seu embaraço,
Clara tê-lo-ia resgatado pelo amor do lado negro da mente a que se arreigava, mas ele travava uma
luta solitária consigo próprio e não se abria com ela.
João Pedro era excessivamente tímido e, mesmo que quisesse seguir os conselhos de Clara, não
saberia transformar-se no homem sofisticado e desembaraçado que ela idealizava. Seria sempre uma
fraude fácil de desmascarar. Podia-se vestir um fato Hugo Boss a um simplório desajeitado, mas não
se podia pretender que o fato lhe mudasse a personalidade. Clara, habitualmente tão sagaz com as
peculiaridades da vida, não entendia esta evidência básica e persistia em fazer de João Pedro uma
ficção ridícula. Ele não lhe confessava as suas limitações, escondia-as em várias camadas de
reacções adversas, fossem as indignações com André, a aversão aos jornalistas ou a teimosia em não
se desviar de um rumo que o levava direitinho para o esquecimento. E Clara ficava ofendida por
pensar que João Pedro desprezava os seus conselhos.
Nunca lhe ocorreu que estivesse a ser injusta ao desconsiderar João Pedro por não ser tão
ambicioso quanto ela. Note-se que Clara era ambiciosa por interposta pessoa, na medida em que
esperava do marido o que não se propunha alcançar sozinha. O que diria Clara se João Pedro tivesse
a lucidez de lhe perguntar porque o criticava tanto se ela própria não conseguia evidenciar-se em
nada para conquistar a notoriedade? Como reagiria se João Pedro a questionasse sobre a
legitimidade dela para o pressionar se não era capaz de fazer melhor? Olha, se gostas tanto da fama,
porque não tratas tu disso e não me chateias? Quer dizer, é mais fácil criticar os outros do que
reconhecer as nossas limitações.
O fracasso de João Pedro vexava Clara, pois sentia o opróbrio de ter um marido que rejeitava os
valores mais idolatrados pela sociedade. João Pedro tinha horror à exposição pública, não queria ser
o centro das atenções, fugia das implicações onerosas da fama. Bem podia Clara bradar indignada
que ele atirava oportunidades pela janela que a maioria das pessoas só podia aspirar em sonhos,
porque o que para ela era desperdício e fracasso, para ele era um preço demasiado alto a pagar. A
fama traria mais reconhecimento pelo seu trabalho, mais reputação profissional, mais dinheiro e
poder, um monte de coisas boas que lhe facilitariam a vida. Como é que João Pedro podia não ter
interesse por isto?
Clara e João Pedro habitavam, portanto, em dimensões diferentes e opostas do universo. Embora
morando sob o mesmo tecto, não partilhavam interesses, desejos, visões da vida. Ela queria chegar
ao topo, ele estava muito bem assim. Evidentemente, antes de casar, não soubera ver como era o
verdadeiro João Pedro, esperara demasiado dele, pensara que tinha apostado num ganhador e saíra-
lhe um falhado. E agora sentia-se defraudada.
Chegados a este ponto, o casamento começou a desmoronar-se a uma velocidade estonteante, mas
só na cabeça de Clara, porque, embora ela fosse acumulando desilusões, João Pedro não sabia ler os
sinais de descontentamento. Clara estava prestes a explodir e ele, na sua abstração natural, não se
dava conta da tempestade que se aproximava.