Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

casa, sabes? — disse. João Pedro levantou-se e seguiu-a.
— Ah, porque eu não trabalho, é isso?
— Tu pintas, eu ganho dinheiro — disse ela, voltando vagamente a cabeça por cima do ombro.
— Mas eu não ganhei já muito dinheiro com os meus quadros?
— Exacto, ganhaste, já não ganhas. E, se não ignorasses o que eu e o André te dizemos, talvez
voltasses a ganhar. Mas, como és casmurro... — encolheu os ombros demoradamente, em jeito de
reticências, foi para o quarto dos gémeos.


Estes choques de baixa intensidade eram agravos que já denotavam a má vontade entranhada em
Clara e, não obstante morrerem tão depressa quanto começavam, foram-se tornando mais frequentes.
A descrença ia-se apoderando dela e, mesmo sem querer, era uma preocupação que não lhe saía do
espírito, sempre a remoer o problema, a cismar com a inépcia de João Pedro.
Clara ligava o início da crise conjugal às primeiras consequências sérias para João Pedro da
desgraça económica que alastrava pelo país. Antes disso, as crescentes dificuldades de Portugal em
financiar-se, os juros galopantes, a inevitável intervenção da troika , a situação de emergência
nacional e a austeridade anunciada eram temas para os telejornais. Porém, as notícias saíram da
televisão, ganharam vida e a crise financeira deixou de ser uma coisa distante, que não se entendia
nem se sentia, para se tornar numa besta que atingiu as pessoas brutalmente.
Houve um primeiro momento em que se sentira culpada por censurar João Pedro precisamente
quando o marido mais precisava do seu apoio mas, depois de constatar que ele não se deixava
ajudar, perdeu todo o pudor e clemência e a má vontade ressurgiu nela com um ímpeto ainda maior.
Não eram tanto os resultados medíocres das vendas dos quadros que a assustavam, mas a
incapacidade dele de reconhecer o problema e agir em conformidade. Era imperioso procurar
soluções e João Pedro parecia um rapazola ingénuo e irresponsável metido na sua concha de artista
puritano, recusando-se soberbamente a fazer concessões ao mercado exangue.

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