Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

— O meu pai interessava-se por pintura. Deixou-me alguns quadros bastante razoáveis. Um dia
destes mostro-lhos.
João Pedro fez um sorriso embaraçado, não por não ter gostado do convite implícito mas por ter
ficado sem palavras. Cristiane interpretou-o mal, pensou que ele a tivesse achado atiradiça e corrigiu
o tiro.
— Diga à sua mulher que eu peço desculpa pela confusão — pediu.
Ela não está cá — afirmou João Pedro muito depressa.
— Ah! Está para fora? Melhor, assim fico mais descansada.
— Não, ela já não vive cá.
— Não?
João Pedro abanou tristemente a cabeça.
— Não.
— Não sabia.
— Bem, vou andando — disse, para não ter de lhe dar explicações sobre a ausência de Clara.
— E eu vou arrumar a casa — fez uma expressão pesada, de quem tinha uma tarefa monumental
pela frente.
— Até logo.
— Até logo.
Antes de sair, João Pedro parou, voltou-se e disse:
— Não se preocupe com a confusão nem com o barulho. Não está cá mais ninguém, somos só nós
os dois. Seja bem-vinda!


Foi uma declaração espontânea, o que, só por si, já era invulgar nele, sempre tão contido e pouco
dado a ousadias. Mas o mundo de João Pedro tornara-se uma coisa estranha no decorrer das últimas
vinte e quatro horas: primeiro, a bizarra conferência do mestre Theophilus Engelbrecht; depois, o
sonho revelador da noite anterior; e agora Cristiane... Tudo bem, pensou, procurando encarar o
assunto com descontracção, não ia entrar em paranóia só porque, de repente, estava metido numa
espécie de Alice no País das Maravilhas, em versão pessoal. Ia alinhar, sim, era esse o espírito,
alinhar com o absurdo. Doravante, João Pedro tencionava aceitar o que a vida lhe oferecesse. Não
iria retrair-se perante o desconhecido, como sempre fizera, antes pelo contrário, queria abraçar o
desconhecido!


Se tivesse de explicar de onde surgira esta súbita e corajosa vontade de mudar radicalmente de
atitude, não saberia muito bem por onde começar, talvez pelo funeral do embaixador, talvez viesse de
antes. Enfim, atribuía-a vagamente a um processo mental desencadeado pela ideia, que se vinha
instalando, de que estava a passar ao lado da vida e que ganhara uma nova e brutal consciência
quando Clara o deixara, ou melhor, na véspera, quando, finalmente, se resignara a sopesar a vida sem
Clara.
Provavelmente, a decisão de se transformar numa pessoa diferente acabaria por ser só uma
veleidade inconsequente, como aquelas decisões cheias de boas intenções que as pessoas tomavam
ao entrar num ano novo e que depois não davam em nada. Afinal, ninguém mudava de um dia para o
outro, ou mudava? João Pedro ainda não tinha resposta para isso, mas hoje sentia-se bem e não ia
estragar o dia com introspecções penosas. Queria simplesmente deixar-se ir com os extraordinários

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