Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

se de uma rotina diária e naquele dia não era suposto ser diferente. Mas acabara por ser. Começava a
aperceber-se de que a vida sem Clara potenciava o inesperado e nunca se sabia como é que os dias
podiam acabar. Enfim, mais uma vez incorria num erro de percepção. Não seria rigoroso atribuir a
Clara, ou à sua ausência, as situações inopinadas. De facto, Clara não tinha nada que ver com os
imprevistos de João Pedro, ele é que revelava uma tendência súbita para fantasiar esses supostos
episódios desusados, a sua mente criativa estava a desviar-se da arte de pintar e a transformar acasos
sem importância nenhuma em acontecimentos extraordinários.
Esta incapacidade de distinguir o verdadeiro do imaginário levara-o a entrar numa dimensão
paralela que o reconfortava, pois permitia-lhe ser uma pessoa diferente do João Pedro assustado com
o mundo, mais precisamente, ser o perfeito oposto de si mesmo. Claro que ele não tinha a noção
deste engenhoso processo mental elaborado para se defender do terror que se instalara sub-
repticiamente no subconsciente desde que Clara o deixara. E só neste aspecto é que seria correcto
relacionar a partida dela com o estado mental dele.


De qualquer modo, João Pedro não se sentia em pânico, mas em grande euforia e, por isso, ao sair
do café não teve vontade de ir para casa. Quis ir à praia, para perto do adorado mar, deleitar-se com
os grandes espaços, aproveitar o sol! Levava na ideia molhar os pés na água fresca. Não lhe ocorreu
passar por casa para trocar as calças por um fato de banho. Gostava daquelas calças, usava-as
orgulhosamente porque diziam o que ele era. Hoje em dia, toda a gente pintava, mas quantos pintores
profissionais havia, pintores a sério, de qualidade? Pois era, desses não se encontravam muitos, e ele
podia reclamar estatuto de excepção, mesmo se já não lhe compravam os quadros. Agarrava-se a
estes pequenos símbolos que faziam a diferença. Sorriu sozinho com esta ideia poderosa, entrou no
carro, foi até à praia.


Deambulou algumas horas por uma dessas praias concorridas de Cascais, demasiado pequenas
num Verão de crise em que as pessoas faziam férias à porta de casa. Descalçou-se, arregaçou as
calças, entrou a direito pela água morna até lhe dar pelos joelhos. Divertiu-se a dar pontapés na água
e nem se importou se os banhistas estupefactos olhavam para ele a pensar que era um tolo vestido na
espuma das ondas. Abriu os braços ao vasto céu azul, inclinou o rosto para o Sol tremendo do início
da tarde, rodopiou alegremente sem parar até cair de rabo e ficar completamente molhado.
Saiu da água com a roupa a pingar e um grande sorriso travesso, antes que alguém chamasse a
polícia marítima para levar dali aquele maluco capaz de se afogar. Apanhou os sapatos que deixara a
salvo na areia seca e foi por entre os corpos deitados a fritar ao sol até ao paredão. Sentou-se numa
esplanada a secar e a tomar uma imperial revigorante. Depois pediu outra e mais outra.


Enquanto ali estava a beber cervejas, já passada largamente a hora de almoço e sem vontade de
comer, João Pedro recapitulou os incríveis e inconfessáveis acontecimentos que estava a
experienciar. Acarinhou deleitado a recordação fresca do sonho da noite anterior e o surpreendente
encontro da manhã com Cristiane. Lembrou-se então que, no sonho, havia duas mulheres e, se uma
era Cristiane, supôs que haveria de conhecer a segunda em breve. Ou, melhor ainda, a outra poderia
ter um significado mais amplo e, nesse caso, quereria dizer que, doravante, iria ter várias mulheres
interessadas nele. Isto, admitindo que Cristiane tinha algum interesse por ele, o que, nesta altura, era
manifestamente pôr o carro à frente dos bois. Mas João Pedro estava tão entusiasmado com estas

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