Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

trapalhão e aluado — que, nessa circunstância, será apelidado de excêntrico.
Tal como Clara, Cristiane interessa-se mais por João Pedro enquanto pintor. Mas, ao contrário de
Clara, Cristiane não pensa na escalada social. Em tempos, recusou muitas propostas para ser
manequim, profissão que lhe teria dado mais fama e dinheiro do que aquela que acabou por escolher.
Cristiane era filha do emérito embaixador e habituara-se a conviver com os príncipes desse mundo,
que o pai convidava lá para casa com toda a naturalidade. Não havia, portanto, deslumbramento
possível por coisas que estavam ao seu alcance e que ela até se permitia rejeitar.


Hospedeira de bordo, loira e bonita, Cristiane tinha tudo para ser o estereótipo da futilidade e da
ignorância. Nada mais errado. Ela era muito inteligente e culta, tinha opiniões sobre os assuntos e
não se intimidava perante as discussões mais eruditas. Herdara do pai esta característica, aprendera
com ele a importância determinante do vasto conhecimento. O que não herdara fora a tendência para
a rebeldia, dado que o embaixador sempre se guiara pela correcção das convenções enquanto a filha
preferia quebrá-las.


João Pedro regressou à companhia de Cristiane e, ao entrar na sala com um sorriso espontâneo e
inocente, ela teve a certeza da sua genuinidade. Aquele bom gigante amarrotado não viera seduzi-la,
não tinha uma estratégia calculada como todos os outros que a abordavam ou se faziam amigos sem a
conhecerem. Cristiane pensou que nenhum homem sensato, que pretendesse seduzir uma mulher, lhe
iria bater à porta com uma apresentação de pedinte, que era tudo menos atractiva. João Pedro morava
ali ao lado, se quisesse causar-lhe boa impressão teria ido a casa tomar banho, pentear-se, perfumar-
se, vestir-se decentemente, antes de lhe aparecer à frente. João Pedro não fizera nada disso, o que o
tornava genuíno aos olhos de Cristiane. Era o desinteresse dele e, claro, a reputação que o precedia,
que a atraía.
Ela considerava-o já um homem misterioso, pensador de grandes silêncios, desligado das coisas
mundanas e, simultaneamente, comprometido com o seu trabalho. Admirou-o como uma jóia rara.
Vamos por partes: João Pedro tocara à campainha de Cristiane porque a queria seduzir, mas num
ponto ela acertara: ele era genuíno, tão genuíno que escapava à dedução feminina, condicionada por
uma forma peculiar de ver o mundo, de entender os homens. De facto, João Pedro não encaixava no
pensamento lógico de Cristiane, do mesmo modo que não encaixava no padrão do comportamento
masculino. Era original, mesmo que não o fosse pelas melhores razões. A verdade teria menos
encanto se ela soubesse que ele só não fora tomar banho e arranjar-se apropriadamente porque nem
lhe ocorrera que o devia fazer. No entanto, Cristiane também pensou bem quando deduziu que João
Pedro não tinha uma estratégia. Ele não fazia ideia o que isso era. Em matéria de sedução, João
Pedro tinha apenas um conhecimento pueril das regras desse jogo primordial que homens e mulheres
jogavam desde o início dos séculos.
O truque da camisa aberta fora um teste malicioso, uma armadilha feminina que Cristiane lhe
armara por imperativo do seu instinto ardiloso. Porém, não levou a mal se João Pedro não resistiu a
dar a sua espreitadela furtiva. Entendia que qualquer homem normal teria tido a mesma reacção. Mas
até o conflito evidente que lhe vira entre a tentação e o embaraço de espreitar era, para Cristiane, um
sinal de que João Pedro não vinha com intenções perversas.
Decidiu que gostava dele. Apreciou os seus longos silêncios tumulares, que confundiu com a
sabedoria de uma alma profunda, quando ele, simplesmente, não falava porque não tinha nada para

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