Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

acusara, meio a sério meio a brincar, de ser insaciável, depois de terem passado uma semana inteira
no quarto de um hotel no Rio de Janeiro. Ela arvorara o seu sorriso mais cínico, replicara ao pobre
esgotado que era fraquinho e não voltara a ter nada com ele.


Estas três semanas com João Pedro seriam, porventura, alguma espécie de recorde nesse aspecto.
Não que ela pensasse nisso, mas sentia-se bem com ele e a sua presença, e tudo o que isso envolvia,
permitia-lhe alienar-se do receio de um futuro incerto e aplacar-lhe o desassossego espiritual. Ria-se
muito com ele e estava a adorar as sessões de pintura intercaladas com o sexo desaustinado e
libertador a que se entregavam a qualquer momento. Certo dia, tendo João Pedro terminado mais um
retrato escandaloso de Cristiane, decidiram encomendar comida chinesa para comemorar. O estafeta
tocou à campainha e João Pedro foi atender, envergando somente uma tanga improvisada com um
pedaço de lençol rasgado à pressa. Bebera já meia garrafa de vinho e fumara com Cristiane um
cigarro de haxixe que ela tinha no fundo de uma gaveta para as ocasiões especiais, de modo que se
imaginou um orgulhoso Cristo despojado das suas vestes antes de ser pregado na cruz. O estafeta,
porém, viu um tipo feio e peludo tapado com uma fralda e ficou de boca aberta, a pensar que ele
pretendia fazer-se passar por um bebé gigante.
João Pedro voltou com a comida encomendada e um sorriso tolo para junto de Cristiane, que se
rebolava a rir nua na cama, enrolada nos restos do lençol rasgado. Era de um perfeito ridículo, mas o
álcool e o fumo que pairava sobre a cama tornavam a cena extremamente hilariante aos olhos de
Cristiane.
Ele, sempre muito sério, foi sentar-se na cama, retirou as embalagens do saco, colocou-as em cima
do lençol, abriu-lhes as tampas, preparou os pauzinhos para comer. Ela, perdida de riso, com as suas
gargalhadas descontroladas, sacudia as embalagens cheias de molho como barquinhos em alto mar e
fazia perigar o branco imaculado dos lençóis, o que acabou por ser irrelevante, porque, finalmente,
entregaram-se a uma épica guerra de comida chinesa e em poucos momentos sujaram a cama e
sujaram-se eles.


— Adoro o efeito trash! — exclamou João Pedro, colocando uma perna fora da cama, um pé no
chão, andando às arrecuas na direcção do cavalete. — Não te mexas!
Cristiane protestou:
— João Pedro, por favor...
— Não, a sério, estás fabulosa!
— Estou toda despenteada e coberta de comida numa cama nojenta!
— É trash, não te mexas, estás perfeita assim.
Trash! O que é essa merda? Inventaste agora!
Ele colocou uma tela enorme no cavalete — só pintava telas grandes — e começou a fazer os
primeiros traços a carvão, enquanto perorava sobre o conceito trash.
— É o ambiente muito sujo e muito colorido. É extravagante e revoltante. Choca porque é
repulsivo, chega a ser ofensivo porque faz o elogio da obscenidade. Muito contracorrente. É trash!
— Não me lixes, esse conceito não existe.
— Claro que existe. Abre mais as pernas, isso, assim está bem. Nunca ouviste falar da cultura
trash?
— Já, e referia-se à televisão mainstream , à música pimba, aos filmes de classe B, à comida de

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