Uma noite em Nova York

(Carla ScalaEjcveS) #1

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A porta do consultório se abriu e a cabeça da enfermeira espreitou
perguntando se podia mandar entrar o próximo paciente. Patrícia virou o
rosto, limpou os olhos às pressas com as costas da mão, endireitou os ombros,
disse que sim. A enfermeira apercebeu-se de que estava sendo inoportuna,
sentiu-se uma intrusa, perguntou “doutora, a senhora prefere que volte mais
daqui a pouco?” Patrícia respondeu não, mande entrar, fazendo um esforço
para se recompor. A enfermeira saiu, ela acabou de limpar os olhos,
socorrendo-se da manga do avental, respirou fundo, disse a si própria que
tinha de aguentar, acabar o dia. Dali a pouco a porta voltou a abrir-se e a
enfermeira fez entrar uma jovem mãe com o seu insuportável filho. “Uma
provação”, pensou Patrícia, “uma provação, é o que isto é”.


Continuou consultando até ao final da tarde, navegando numa tristeza
camuflada em sorrisos forçados, apelando a uma condescendência que não
sentia, controlando-se para não tratar mal os pacientes mal-educados, as
crianças irrequietas, as inconveniências das enfermeiras. Mas quando ficava
sozinha entre duas consultas não conseguia abstrair-se da aflição que a
incomodava. Filipe dera-lhe a entender no telefonema que voltaria de Nova
York para passar o Natal em família, mas que não continuaria em casa. E
Patrícia, reconhecendo o fim, mergulhada numa angústia, viu-se assaltada
pelo fantasma das recordações felizes dos primeiros tempos deles.


Não lhes faltaram pretextos para se verem depois de Filipe ter alta do
hospital. Ele submeteu-se durante quatro longos meses a exercícios de
fisioterapia e, de novo, foi Patrícia quem providenciou para que tivesse a
melhor assistência. Mexeu-se no seu ambiente, perscrutou os seus
conhecimentos, moveu as suas influências para que Filipe conseguisse
ultrapassar incólume os impedimentos insuperáveis da burocracia oficial e
chegasse sem demora às mãos do fisioterapeuta mais competente, ao arrepio
de todas as contrariedades do sistema, que era cego na atribuição dos médicos
e não permitia que os pacientes escolhessem quem os tratava.


Por esses dias, embora resistisse aos avanços de Filipe, não se mostrando
realmente empenhada em ir mais além de uma sólida amizade, Patrícia
revelou uma preocupação constante com a sua saúde, foi dedicada e até
voluntariosa, obrigando-o a cumprir os exercícios, arrastando-o para a

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