Público - 19.09.2019

(Ron) #1

36 • Público • Quinta-feira, 19 de Setembro de 2019


CULTURA


O punk está no corpo africano


de Nora Chipaumire


RICCARDO PANOZZO

Nora Chipaumire dialoga neste espectáculo com versos de Patti Smith, uma conversa que alimenta há vários anos

No palco, Nora Chipaumire fala, voci-
fera... canta. “ Put your hands together ,
people !”, “ I’m a rock and roll nigger !”,
For the first time , Africa !” “ I’m going
to fuck really hard with the present
,
with the past ”. O punk, o dub, o
reggae, Jimi Hendrix conduzem as
palavras à memória e às emoções dos
que vêem e escutam. E nesse momen-
to, nesse preciso momento, um corpo
(negro) e uma música (popular) recla-
mam ambos a dignidade da aparição
pública. Ou seja, a dignidade das suas
histórias.
Em breves e provisórias palavras,
eis #Punk , que Nora Chipaumire
(Mutare, 1965), coreógrafa e bailarina
do Zimbabwe, oferece esta noite, às
21h30 no Teatro Municipal de Vila do
Conde. Espectáculo de abertura da
15.ª edição do Circular — Festival de
Arte Performativas, é um concerto
musical, uma performance , uma peça
de dança. “É tudo isso, sim”, conÆr-
ma a artista ao PÚBLICO por telefone.
“Vejo o meu trabalho como uma enti-
dade viva, quer quando uso a voz,
quer quando uso o corpo. Há uma
vitalidade, uma sensação de vida que
o anima. Se pensarmos o que faço em
termos mais tradicionais, talvez não
exista”, admite.
Mas o desígnio da performance não
se reduz à mera presença expressiva
do corpo. Aos gestos juntam-se as
palavras e os seus sentidos. “Quero
criar um espaço de envolvimento
com os outros. E fazer aparecer as
ideias nesse espaço. O que signiÆca
estar em conversa com uma audiên-
cia? Como posso criar espaços de
reunião e de encontro em que as pes-
soas possam participar? Trocar ideias,
pôr ideias em comum? São, para
mim, questões muito importantes.”


O som do Äm do império


Ao lado de Nora está outro performer ,
outra voz, Shamar Watt. O palco é
deles, dos seus movimentos tão remi-
niscentes da disciplina da dança
como dos espasmos dos vocalistas do
rock, do punk, ou do reggae. Por
vezes, desaparecem na assistência,
antes de regressarem, numa vertigem


contrário dela, sempre falei muito
com o passado. O passado é muito
importante para todos os colonizados
e é nesse sentido que dialogo com os
textos, impondo a minha presença
num cânone que ainda consideramos
europeu.”
Impor a presença tem implícita a
ideia de um confronto pela discus-
são, pela palavra, que não se confun-
de com o perdão, o esquecimento ou
a reparação. “Não falo de vingança,
é um desperdício de tempo, de ener-
gia. Mas quero encontrar o outro
face a face, para ter uma conversa
com ele, sem medo.” O som tem nes-
se processo um signiÆcado funda-
mental: “Em África, a música popu-
lar foi sempre menosprezada, quan-
do disseminava mensagens políticas
importantes, por vezes sem que o
colonizador disso se apercebesse.
Com os seus jogos de palavras, a sua
polissemia, criou um espaço que
dava humanidade às pessoas
comuns. O meu desejo, no palco, é,
também, a aÆrmar dignidade que ela
sempre teve.” A dignidade de todos
os “ rock and roll niggers”.

Na abertura do Circular — Festival de Arte Performativas, em Vila do Conde, a coreógrafa e bailarina


conversa sem medo, olhos nos olhos, guiada pela alegria da música, com o passado de África e da Europa


Dança


José Marmeleira


exponenciada pelas palavras e, de
novo, pela música. “ #Punk tem embe-
bida uma palestra sónica”, esclarece
a autora. “De outro modo, podia ser
descrito como um álbum de música
ao vivo. As pessoas sentem a música,
tocam-na, interpretam-na, mas há
uma narrativa que é evocada.” Uma
narrativa política, musical, cultural,
e, em certa medida, familiar a mui-
tos leitores: a de um fenómeno polí-
tico e histórico. “Estou a cruzar
fronteiras que porventura muitos
teóricos e historiadores da [música
pop] não teriam coragem de atraves-
sar. Por exemplo, entre o dub e o
punk, que emergiram na mesma
altura. Considero que a colisão de
ambos é um produto do colapso do
Império Britânico, quando se reuni-
ram, nas ruas de Londres, negros,
indianos, caraíbas. Ocuparam um
espaço que era também o das classes
trabalhadoras brancas, dos pobres,
e forjaram com estes e entre si uma
aliança pelo som. É esse som que
ouvimos aqui. O da classe trabalha-
dora, o dos pobres, o de um momen-
to na história do Império.”

divisão em termos sociais e económi-
cos que viria a reÇectir-se nas práti-
cas culturais, mas também se veriÆ#
cou, a par dela, uma orientação ali-
mentada pela indústria.”

Em diálogo com Patti Smith
A posição da coreógrafa é clara:
“Rejeito que um negro tenha de fazer
apenas música negra, que uma
mulher tenha de fazer aquilo que se
considera ser próprio de uma
mulher. Quero abrir um espaço de
interrogação. Ninguém tem o mono-
pólio das ideias, das obras. Quem
disse que um certo género musical
ou determinada teoria pertencem ao
cânone ocidental, que os espirituais
negros pertencem à cultura negra ou
que a rumba congolesa pertence aos
africanos?”
Há interlocutores nesta conversa.
Grace Jones, Fela Kuti, Bad Brains,
The Clash, Hendrix, Thomas Mapfu-
mo, Linton Kwesi Johnson e, em par-
ticular, Patti Smith. “Estabeleço há
vários anos um diálogo com a obra.
Aproprio-me de versos de Babelog , de
Gloria , de Rock’n’roll nigger. Mas, ao

Música e história, pop, rock, punk,
dub e dança contemporânea. No
palco, todos estas categorias aca-
bam, se não estilhaçadas, pelo
menos viradas do avesso, com um
gesto (e um gosto) que se sente físico,
visceral. “Adoro punk rock, o rock
and roll, a música, toda a música. O
som é físico, uma vibração, e os cor-
pos reagem a ele. Não separo os
movimentos mais coreografados dos
mais espontâneos e espasmódicos,
tento eliminar, diluir essa separação.
Por isso trago o punk e o dub.”
Um elemento curioso em #Punk é
a naturalidade com que Nora, alheia
ao cisma que nos anos 70 afastou a
cultura negra do rock, se apropria de
Patti Smith e da herança de um punk
considerado demasiado branco.
“Não vejo razão para que mais pes-
soas não o façam. O meu corpo afri-
cano é o produto da colisão da cul-
tura anglóÆla com outras culturas. Já
a separação por categorias é, a meu
ver, uma estratégia para comerciali-
zar objectos. Quando a música é,
essencialmente, música. Admito que
nesse período tenha havido uma
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