Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019 • 15
POLÍTICA
ssionalizada
do a uma espécie de ritual, com um
padrão que se repetia, havendo con-
sequentemente um guião.
Ao analisar materiais, documen-
tos, correspondência, peças de jor-
nais e as entrevistas realizadas con-
clui-se que a campanha tinha um
protocolo de acção, que já foi aqui
descrito — desde a recepção por per-
sonalidades destacadas da terra às
homenagens em monumentos
emblemáticos. Daqui decorre que
tudo parecia obedecer a uma coreo-
graÆa previamente estabelecida,
coreograÆa essa que também pode
ter uma leitura simbólica.
Para fazer as refeições ou pernoi-
tar, Delgado escolhe Æcar no melhor
e mais conhecido hotel da região, o
que indicia que se está perante um
candidato de prestígio.
Simbolicamente, cada um destes
lugares e destas escolhas tem uma
razão de ser e uma mensagem.
O facto de aparecer nas localida-
des num carro aberto, descapotável,
a acenar à multidão, é também uma
imagem recorrente nos líderes do
século XX e fazia parte da forma
como estes comunicavam com as
massas. Este tipo de veículo estava
muito em voga entre chefes de Esta-
do e de Governo e foi também utili-
zado por Dwight Eisenhower na sua
campanha.
Porventura, o assassínio do presi-
dente norte-americano John F. Ken-
nedy, a 22 de Novembro de 1963,
quando se encontrava precisamente
num carro deste tipo, veio alterar
esta forma encenada de interacção
com a população, por questões de
segurança.
Ironicamente, em plena campa-
nha eleitoral, Humberto Delgado
deu uma entrevista ao jornal britâni-
co Daily Mail, de 3 de Junho de 1958,
na qual dizia: ‘Eu ando sempre num
carro descoberto, a mostrar-me! Não
tenho medo de ser assassinado.’
(...) Nem tudo é proÆssional na
campanha protagonizada por Delga-
do, mas, efectivamente, muitas das
suas componentes são já proÆssio-
nalizadas, e é por isso que se pode
falar de uma campanha de tipo mis-
to, que mantém também caracterís-
ticas marcantes das campanhas pré-
modernas: mais localizadas, descen-
tralizadas, recorrendo a voluntários,
de baixo custo, tendo os jornais e a
rádio como principais meios de
comunicação.
Simultaneamente, esta é uma cam-
panha feita sem cobertura nem anún-
cios televisivos, mas que inclui já de
forma inequívoca elementos essen-
ciais das campanhas modernas: uma
estratégia concertada entre as várias
componentes, visual e discursiva, e
com mensagens organizadas tendo
em vista públicos especíÆcos, numa
estrutura de comunicação proÆssio-
nal — da qual Æzeram parte slogans,
targets, assessoria de imprensa, pre-
paração do discurso do candidato e
da mensagem a passar —, que parece
denotar também o entendimento
dos media como uma instância de
mediatização social e não como uma
extensão do poder instituído.
Há já a consciência de que a ima-
gem pessoal e um bom domínio das
técnicas discursivas são elementos
determinantes que podem vencer
eleições — no fundo, vender um pre-
sidente como se de um produto se
tratasse —, ao mesmo tempo que
assume já importância a questão do
carisma e da personalidade do can-
didato, a par de discursos e gestos
dramáticos (quase encenados). Os
serviços de candidatura de Humber-
to Delgado apresentam-se comple-
tamente cientes da necessidade de
uma boa cobertura mediática, como
atesta o já referido documento
encontrado no espólio de Manuel
Mendes, onde já se previa a presença
de 250 pessoas para o evento no café
Chave d’Ouro e a indicação sobre a
forma como o candidato deveria
apresentar-se em público, ‘fardado,
rodeado de amigos pessoais e comis-
sões do Porto e de Lisboa’. Havia
inclusivamente um manuscrito com
o esboço de um quadro para levan-
tamento do número e da categoria
proÆssional dos apoiantes de Hum-
berto Delgado por distrito, para tirar
conclusões sobre percentagens e
presença das diversas proÆssões.
A campanha revela ainda Çexibili-
dade, dinamismo e adaptação, aten-
ção ao feedback que chegava das
populações, com propaganda que
acompanhava o desenrolar da cam-
panha, o dia-a-dia do país e a acção
do regime. Uma candidatura que foi
capaz de negociar o apoio de um
candidato adversário e de se adaptar
à fusão das duas candidaturas a pou-
cos dias do acto eleitoral, conseguin-
do manter uma estrutura organiza-
tiva, apesar da perseguição e deten-
ção de alguns dos seus apoiantes nas
vésperas das eleições. Teve ainda de
desenvolver estratagemas para con-
seguir cumprir com algumas forma-
lidades no âmbito do acto eleitoral,
como é o caso da cópia dos cadernos
eleitorais ou da entrega dos boletins
de voto aos eleitores.
Todos estes elementos de proÆs-
sionalização da campanha de Hum-
berto Delgado são fundamentais
para o argumento central deste livro:
a americanização, no sentido a que
se refere Marco Cacciotto, que se
reÇecte na importação das estraté-
gias e lógicas das campanhas presi-
denciais norte-americanas, adaptan-
do-as ao contexto europeu — neste
caso, ao contexto português e do
Estado Novo, com as suas contingên-
cias de ordem política e cultural.
Esta é, pois, uma campanha de
inspiração americana, inÇuenciada
principalmente pela Ægura de Dwight
Eisenhower, apesar das circunstân-
cias distintivas.
Há um claro desfasamento entre o
modelo de campanha desenvolvido
pela candidatura de Humberto Del-
gado e o contexto sociopolítico no
qual ela decorreu, onde não existiam
eleições livres, não havia margem
para a pluralidade de opiniões, para
a liberdade de expressão ou para a
visibilidade das oposições ao regime.
SigniÆca, pois, que foi uma campa-
nha que forçou um conjunto de
características de proÆssionalização
e de democratização num contexto
completamente adverso e inespera-
do — o contexto de um regime não-
democrático.”
DR
Imagem da campanha
presidencial de Humberto
Delgado, em 1958
O livro Uma Campanha
Americana/Humberto Delgado
e as Presidenciais de 1958 é
apresentado dia 11 deste mês
por José Pacheco Pereira e
contará com a presença do
Presidente da República,
Marcelo Rebelo de Sousa