Público - 09.09.2019

(Ron) #1

14 • Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019


POLÍTICA


Uma campanha profis

Em Uma Campanha Americana, da editora Tinta da China,


a jornalista Joana Reis conta a história da corrida eleitoral


que fez tremer o Estado Novo. Pré-publicação de uma parte


da obra que chega às livrarias esta semana



U


m bom exemplo
da proÆssionali-
zação na cam-
panha de Hum-
berto Delgado
encontra-se na
criação de even-
tos próprios,
como foi o caso
da conferência
de imprensa do Chave d’Ouro, em
que o esboço de perguntas e respos-
tas revela um enorme nível de cons-
ciência do que signiÆca gerir proÆs-
sionalmente a informação.
Isto demonstra como esta campa-
nha era proÆssionalizada e tinha
uma estratégia de informação e
comunicação pensada por pessoas
especializadas, apesar de, em Por-
tugal, neste tempo, ainda não ope-
rarem agências de comunicação ou
assessores de imprensa, pelo menos
com as designações ou nos termos
em que nos dias de hoje os conhe-
cemos.
Na década de 50, nos Estados Uni-
dos, já uma campanha presidencial
envolvia trabalho intenso e assisten-
tes qualiÆcados para tratar de todos
os pormenores, nomeadamente uma
‘panóplia de assessores, consultores,
peritos e académicos das áreas da
comunicação, psicologia e política’.
Através da história sobre a asses-
soria de imprensa no contexto da
comunicação política traçada por
Vasco Ribeiro, é possível perceber
que a preocupação com a imagem
dos candidatos presidenciais na
década de 1950, nos EUA, é quase
obsessiva, com trabalho desenvol-
vido para que aqueles se apresen-
tassem com uma boa voz e uma
dicção irrepreensível. A candidatu-
ra republicana de Eisenhower orga-
nizou inclusivamente barómetros
para medir o impacto do nome do
candidato perante os eleitores, deÆ#
nindo ‘o comportamento público e
o conteúdo dos discursos em função
desses estudos’.


Nos Estados Unidos, as candidatu-
ras presidenciais surgiam já em
estreita ligação com agências de
comunicação e publicidade, às quais
se recorria para idealizar e concreti-
zar spots de rádio e de televisão,
embora só alguns anos mais tarde os
candidatos presidenciais tenham
passado a fazer um uso mais alarga-
do e exaustivo das possibilidades que
o meio televisivo oferecia.
Na sociedade americana, ainda
segundo Vasco Ribeiro, a televisão
era já o ‘meio mais utilizado para a
promoção comercial e institucional’,
tendo em conta que permitia chegar
directamente às pessoas e inÇuen-
ciar uma camada muito alargada da
população.
Havia transmissões no país desde
1939 e, na década de 1950, a televisão
estava perfeitamente democratizada
e presente na grande maioria dos
lares. A própria agenda política e a
decisão dos governantes era inÇuen-
ciada pelo que se passava na esfera
pública.
Em Portugal, não existia quem se
dedicasse ao marketing político, e a
proÆssionalização das campanhas
era ainda uma realidade nunca antes
experimentada, com o regime a
empenhar-se pouco ou quase nada
nas campanhas da União Nacional e
a oposição a apresentar-se num cur-
tíssimo espaço de tempo, sem gran-
de margem de manobra e sem visi-
bilidade.
Também neste ponto a campanha
de Humberto Delgado constituiu
uma total inovação em relação a
todas as anteriores, com tarefas deÆ#
nidas e lugares atribuídos dentro do
núcleo duro dos serviços de candi-
datura — inclusivamente, com car-
tões de identiÆcação dos colabora-
dores, com nome, proÆssão, local de
residência e número de Bilhete de
Identidade, tendo no verso a assina-
tura do portador.
Mesmo não sendo especialista em
marketing ou não tendo sido for-
malmente designado como assessor
de imprensa, Raúl Rêgo desempe-
nhou esse papel na campanha do
general.

‘omitida na televisão a Ægura do
General Humberto Delgado’.
De facto, não basta a existência do
meio, é necessário haver consciência
do que signiÆca comunicar através
dele. O único com acesso à televisão
era o candidato apoiado pela União
Nacional, Américo Thomaz, mas este
não a pôs ao seu serviço. O estudo
realizado por Francisco Rui Cádima
sobre a relação do salazarismo e do
caetanismo com a televisão permite
concluir que foi sobretudo no tempo
de Marcello Caetano que o principal
meio de comunicação de massas foi
‘instrumentalizado e objecto de pro-
paganda do regime’.
Pelo contrário, a oposição não
tinha qualquer acesso à televisão,
dominada também pela censura, que
constituía ‘o parâmetro estruturante
de base de toda a estratégia política
e tecnodiscursiva para o novo meio’.
No contexto especíÆco do Estado

Novo, teria sido impossível ter a tele-
visão como elemento central da cam-
panha política da oposição.
Importa, pois, ressalvar que,
quando se referem os elementos de
americanização presentes na cam-
panha de Humberto Delgado nas
eleições presidenciais de 1958, isso
não signiÆca que a mesma tenha sido
decalcada das americanas, na medi-
da em que a transposição de uma
estratégia de campanha de um país
para outro nunca é total, existindo
uma adaptação da dinâmica mediá-
tica ao contexto e às características
do país e do meio envolvente.
No caso da campanha eleitoral do
general Delgado, a consciência
mediática e a noção de que a campa-
nha é também construída através
dos media, e do uso destes para Æns
políticos, determinaram que as acti-
vidades e os eventos eleitorais
tenham sido organizados obedecen-

Juntamente com Manuel Mendes,
funcionaram como consultores polí-
ticos, dando indicações, orientações,
conselhos ou mesmo escrevendo as
intervenções que o candidato fazia
publicamente — um trabalho de equi-
pa onde não faltou a contratação de
um fotógrafo pago para fazer a
cobertura da campanha, com o claro
propósito comunicacional de enviar
reportagens para o estrangeiro.
(...) Além de uma consciência do
discurso e da mensagem a passar,
havia já um claro entendimento do
papel dos meios de comunicação
como mediadores da campanha.
Alguns dos documentos que inte-
gram o espólio de Manuel Mendes,
depositado na Fundação Mário Soa-
res, denunciam esta maneira de
olhar a comunicação política como
um espectáculo, concentrando o
«eixo da comunicação política na
personalidade e carisma dos pró-
prios candidatos». A documentação
sobre a planiÆcação da campanha
de Humberto Delgado revela o cui-
dado na escolha dos oradores e con-
teúdo das intervenções, ‘pois os
comícios são grandes espectáculos
políticos’.
Um dos traços-chave das campa-
nhas modernas, proÆssionalizadas e
orientadas de acordo com uma cons-
ciência mediática, é o facto de serem
delineadas a pensar no meio televi-
sivo e nas possibilidades que este
oferece. Essa é, no entanto, uma
dimensão que a campanha de Hum-
berto Delgado não tem, o que não
invalida que a mesma haja assumido
um conjunto de outras característi-
cas que lhes são próprias — a televi-
são como elemento central não esgo-
ta as características das campanhas
modernas.
Se a proÆssionalização que se
encontra na campanha de Eise-
nhower era orientada e dirigida em
função do meio televisivo, a campa-
nha presidencial portuguesa de 1958
passou quase despercebida na tele-
visão, que assumia um discurso assu-
midamente protocolar e oÆcioso,
sem qualquer referência aos adver-
sários do regime. Nesse sentido, foi

Pré-publicação


Joana Reis

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