Época - Edição 1079 (2019-03-11)

(Antfer) #1

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de cinema. Tinhadeaproveitar, enão seriaao
lado de seu Victor,que continuava lendo al-
guma coisa, distraído.Como se não bastasse,
eu perseguiatambém revistas de mulheres
peladas, enão apenasPlayboy.Chamavam-se
PenthouseeHustler,e xplicitíssimas, ambas
proibidasno Brasil daquele tempo.
Mesmo sendoantes das 10 horas da ma-
nhã,faltandotrês para adecolagem, pedili-
cençaalegando“coisasafazer”efuidarminha
caminhadaperduláriaelúbricapeloaeroporto.
Seu Victor,entretidonaleitura,nem notou
minha ausência. Quando voltei, carregadode
pacotes adocicados,alcoolizadoseobscenos, a
situação na sala VIP havia se tornado pior —
pelo menos para meu lado. Seu Victortinha
arrumadocompanhia, esta sim, àaltura.

E

ra odoutor Roberto Marinho.Elegantís-
simos, os dois, em seus ternos parecidos,
na cor azul-cinzento, cada um mais elo-
quente que ooutro,comentando seus triun-
fos empresariais. Eu me aproximei, com
meu blazer lilás-escuro,novo em folha,
comprado especialmente para aocasião,e
com osbraços lotados de troféus ordinários.
Sentei-me, fatalmente, ao lado deles.
Além de mim, eles eram os dois únicos
ocupantes da sala ainda quase deserta. Seu
Victor levantou-se emeapresentou aseu par
comoum“colaborador”. Odoutor Roberto
tambémse levantou eapertou minha mão.
Pode ter me reconhecido,vagamente como o
seu Vitor haviafeito antes, porqueanos atrás
eu havia trabalhado no jornalOGlobo.U ma
vez fiquei quatro ou cinco minutos na sala

dele, único lugar do prédio onde oar-condi-
cionado nunca era desligado, efalamos de
cinema. Ele não poderia saber com certeza
se me conhecia ou não.Mas, se estava com
seu Victor,pode ter pensado,eudeveria ser
alguém. Dirigiu-me duas palavras:
—Como vai?
Dessa vez não precisei responderporque
os dois colossos logo em seguida se senta-
ram ecomeçaramafalar sobre os rumos da
economiabrasileira.Amisericórdia divina
trouxe ao salão mais pessoas ilustres, que
lhesdistribuíamabraço ecomprimentos, e
eu ia fumandoum atrás do outro,emsilên-
cio.Umpouco antes da 1hora da tarde, fo-
mos chamadosaembarcar.
Seu Victor eodoutor Robertolevanta-
ram-se.Naturalmente tinhamosbraçosli-
vres de encomendas.Eu carregavavárias de-
lasemeatrapalhei.Osdoisgrandeshomens,
ameu lado,ficaram constrangidosemeso-
correramnaquele momento difícil. Seu Vic-
tor me ajudou carregando duas sacolas eo
doutor Robertomaisuma.Malevolamente,
pensei: “Tem de ter um fotógrafoaqui para
registraresta cena. Ninguém vai acreditarse
eu contar.” Masnão havia nenhum, eessa
imagem,que seria inesquecívelse feita ede-
pois impressa, ovento levou para sempre.
Quando seu Victor eodoutorRoberto
partiam rumoaosupersônico,percebique
sobrara no sofá um de meus embrulhos.Fui
buscá-lo,mas achei algo mais: uma carteira
perdida onde antes se sentara odoutor Ro-
berto.Euapeguei, pus no bolso esai cor-
rendorumoaoConcorde.Meusilustrescar-
regadores já estavam instaladoseajeitando
minhas sacolas nos compartimentos.
Odestino,outra vez misericordioso,nos
colocouempoltronas separadas. Eu não
queria pensar na hipótesede viajar ao lado
de um deles. Era minha estreia supersônica,
eeuplanejava me embriagarecomer,sozi-
nho com minhas fantasiasmaisdelirantes,
além do mais contemplando aTerra a
18.000 metros de altura. Nada que pudesse
ser compartilhado com patrões ou ex-pa-
trões, ou que eles pudessementender.
Foiquando senti no bolso de meu blazer
ovolumedacarteiraquenãoeraminha.Era
preciso devolvê-laaseu dono.Antes que o
aviãodecolasse,oinstintovulgarderepórter
me levou aabri-la. Era linda, de um couro
escuro com uma leve aplicação de dourado.

NOTASSUPERSÔNICAS

RUBENSMANO/FOLHAPRESS

Victor Civita,fundador
da Editora Abril:
sopa emáscara nos
olhos no avião

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