MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13
mo. Seu trabalho para por aí; a máqui-
na assume então.
A automação da previsão foi colo-
cada em prática durante a contrain-
surreição no Iraque. Como parte do
programa de modelagem do compor-
tamento humano, o Pentágono está fi-
nanciando um sistema de alerta de cri-
se iminente: o Integrated Crisis Early
Warning System [Sistema Integrado de
Aviso Antecipado de Crise] (Icews). Es-
se sistema explora dados sobre vários
países e suas populações. O oráculo é
um autômato, uma máquina de pro-
cessamento de dados agregados por
meio da mídia e das redes sociais. Nes-
sas previsões, apenas a gestão segura
dos movimentos sociais conta. O justo
e o injusto não são pontos essenciais
nos mapas da vigilância automatizada.
O programa mapeia as sociedades do
globo de acordo apenas com as polari-
dades do estável e do instável.
No entanto, apesar de todas as tec-
nologias usadas no Icews ou no Radar
Social, a previsão automatizada fun-
ciona mal. Como se trata de prever
distúrbios por meio dos discursos vei-
culados pela mídia e pelas redes so-
ciais, ou a crise já está declarada (e,
portanto, a previsão é literalmente
nula), ou se manifesta de outra forma,
sem aparecer, nesse caso, nos radares
dessas máquinas. Assim, as revoltas
árabes de 2011 e 2012 escaparam dos
radares algorítmicos, cujos progra-
madores parecem ignorar que as in-
surreições não começam no Facebook
ou no Twitter, mas off-line, em áreas
carentes, como foi o caso no Egito e na
Tunísia. Outra fraqueza do instru-
mento de medição: os meios de comu-
nicação escaneados por essas ferra-
mentas de computador nem sempre
oferecem uma leitura fiel da realidade,
em particular quando são controla-
dos pelo regime em vigor ou por inte-
resses econômicos poderosos.
O Departamento de Defesa pôs em
prática vários projetos para desenvol-
ver a pesquisa aplicada à guerra cen-
trada nas pessoas. Com isso, o mundo
universitário tem contribuído ativa-
mente para a criação da nova enge-
nharia de dados socioculturais. Con-
duzida sob os auspícios da Minerva
Research Initiative [Iniciativa de Pes-
quisa Minerva], nome dado em home-
nagem à divindade romana da guerra
e da estratégia, essa militarização das
ciências sociais permitiu o financia-
mento, dentro mesmo das universida-
des, de trabalhos sobre a sociologia e a
psicologia das redes “terroristas” e a
modelagem de comportamentos este-
reotipados de “insurgentes”. Converti-
do aos imperativos táticos do Pentágo-
no pela irresistível virtude dos dólares,
o mundo do conhecimento concordou
em transformar o contraterrorismo e a
contrainsurreição, tarefas ligadas di-
retamente ao Estado, em objetos de
pesquisa científica.
A mobilização dos saberes, no en-
tanto, vai além do quadro universitá-
rio. Em 2011, o Cultural Knowledge
Consortium [Consórcio de Conheci-
mento Cultural] (CKC) foi criado para
congregar pesquisas públicas e priva-
das. Pesquisadores especializados
atuam ali ao lado de especialistas que
trabalhavam com os mesmos assun-
tos em associações, indústrias priva-
das ou no Departamento de Defesa. O
objetivo era colocar em rede o conhe-
cimento sobre as sociedades autócto-
1 Barry Costa e John Boiney, “Social Radar” [Radar
Social], Mitre Corporation, Mc Lean, Virgínia,
- Disponível em: <www.mitre.org>.
2 “Global Cultural Knowledge Network” [Rede Glo-
bal de Conhecimento Cultural]. Disponível em:
https://community.apan.org.
3 “Socio-cultural analysis with the reconnaissance,
surveillance, and intelligence paradigm” [Análise
sociocultural com reconhecimento, vigilância e pa-
radigma de inteligência], Centro de Desenvolvi-
mento de Pesquisa de Engenharia do Exército dos
Estados Unidos, 2014. Disponível em: http://nsi-
team.com.
nes e torná-lo acessível a todos os
membros do consórcio em um portal
on-line. O projeto foi concluído em
2013, mas a Global Cultural Knowled-
ge Network [Rede Global de Conheci-
mento Cultural] (GCKN) assumiu as
rédeas em 2014. Essa organização visa
“reunir toda a capacidade intelectual
dos Estados Unidos para as futuras
missões do Exército orientando o co-
nhecimento sociocultural para a to-
mada de decisões”.^2
GUERRA E MARKETING
Com essa virada cultural da guer-
ra, novos setores estão surgindo den-
tro do complexo militar-industrial.
Além da GCKN e do programa de mo-
delagem do comportamento humano,
o departamento investe em “métodos
computacionais para modelar [...] sis-
temas sociológicos”, em “análise cien-
tífica de dados” e “desenvolvimento
e m a l g o r i t m o”.^3 Essa reorientação
também é observada entre provedores
privados. Criadora, desde 1958, de fer-
ramentas de defesa aérea, a Mitre Cor-
poration, por exemplo, vem desenvol-
vendo desde a segunda metade dos
anos 2000 programas de computador
de análise de redes sociais em contex-
tos de contrainsurreição. Seu slogan:
“Resolver problemas para um mundo
mais seguro”. Da mesma forma, a Ap-
tima, empresa especializada em “en-
genharia centrada no ser humano”,
vem conduzindo desde 2006 uma série
de pesquisas financiadas pelo Depar-
tamento de Defesa sobre detecção e
previsão de comportamentos suspei-
tos usando estatísticas e ciências so-
ciais computacionais.
A modelagem de comportamentos
entra em uma fase industrial. Além do
mercado militar e antiterrorista, a de-
tecção e a previsão automatizadas da
instabilidade social seduzem os pro-
fissionais de segurança. Em 2013, a
empresa norte-americana Navanti,
por exemplo, desenvolveu o programa
Native Prospector para pesquisar po-
pulações no norte da África e na África
Oriental. O objetivo era conter a ex-
pansão da Al-Qaeda na região. Em
2017, utilizando as mesmas tecnolo-
gias, a Navanti ofereceu seus serviços
para empresas que desejassem se de-
senvolver na região ou no Oriente Mé-
dio. Outros estão convertendo as fer-
ramentas inicialmente desenvolvidas
na ótica antiterrorista em ferramentas
de marketing supostamente capazes
de sondar a mente dos consumidores.
Criada em 2007 para fornecer ao go-
verno dos Estados Unidos “soluções
inovadoras em ciências sociais” – co-
mo diz seu site –, em matéria de segu-
rança ou de defesa, a empresa NSI ex-
pandiu depois de 2011 sua clientela
para empresas comerciais. Afinal, ma-
pear e prever “insurreições” envolve o
mesmo raciocínio de previsão com-
portamental do marketing.
A ocupação do Iraque funcionou
como um laboratório no qual foram
experimentadas formas de controle
social automatizado e capaz de fazer
previsões destinadas a rastrear “in-
surgentes”. Esse modus operandi con-
tinuou nos anos 2010 em outras zo-
nas de conflito, particularmente na
África Subsaariana. Eles estão agora
migrando para o campo civil: a enge-
nharia de dados socioculturais, afi-
nal, não passa de uma modalidade de
gestão populacional.
*Olivier Koch é professor pesquisador.
Além do mercado
militar e antiterrorista,
a detecção e a previsão
automatizadas da
instabilidade social
seduzem os profissionais
de segurança