12 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
AS CIÊNCIAS SOCIAIS A SERVIÇO DA “CONTRAINSURREIÇÃO”
Retrato do intelectual como soldado
Desde a invasão do Iraque em 2003, o Exército norte-americano vem financiando novas tecnologias
para detectar “insurgentes”. Baseadas nas ciências sociais e na coleta de dados digitais em massa, essas
ferramentas encontram aplicações muito além das zonas de guerra
POR OLIVIER KOCH*
© Rodrigo Leão
D
iante de uma tela, um soldado
pilota um drone. A milhares de
quilômetros do centro de con-
trole, ele abre fogo contra pes-
soas no solo. Essa cena agora comum
acontece no Iraque, no Iêmen e na
África como parte da luta contra a Al-
-Qaeda no Magreb islâmico e contra o
Boko Haram.
Como identificar o inimigo? Os mi-
litares não têm mais como alvo um in-
divíduo identificado pela inteligência
humana, mas um estereótipo compor-
tamental: uma estrutura de dados que
caracteriza um comportamento anor-
mal. Se os analistas julgam que aquele
que corresponde a isso é perigoso, po-
dem considerar sua “neutralização”.
Muitas vezes, sua identidade e seu no-
me não são conhecidos antes que ele
seja condenado à morte. O que impor-
ta, sobretudo, é a coleção de vestígios e
de dados em massa capazes de com-
por uma “assinatura” comportamen-
tal: o que ele faz? Quem ele visita dia-
riamente? Aonde vai? Programas de
computador, em seguida, desenham
perfis e isolam aqueles que se desviam
da norma.
A informatização do campo de ba-
talha remonta à década de 1940 e ao
nascimento da cibernética. Ela se de-
senvolveu nos Estados Unidos durante
a Guerra do Vietnã (1955-1975) graças
a pesquisas realizadas no âmbito da
Agência para Projetos de Pesquisa
Avançada da Defesa (Darpa). Desde
então, o Exército vem usando compu-
tadores e dados em massa para guiar
armas e pilotar mísseis remotamente.
Mas a ocupação do Iraque marca um
ponto de virada. De uma forma sem
precedentes, o Pentágono mobilizou a
computação conectada para guiar os
exércitos no “terreno humano” – um
eufemismo militar para designar a
população.
Em 2003, a guerra regular, após
causar a queda do regime de Saddam
Hussein, deu lugar a um conflito assi-
métrico que opunha as forças da coali-
zão internacional a grupos armados. O
Exército norte-americano ligou isso na
ocasião à arte da contrainsurreição já
colocada em prática no Vietnã. Com
uma dupla intenção tática: distinguir
o combatente do não combatente e li-
mitar o apoio de civis a grupos arma-
dos. Nessa lógica de guerra centrada
na população, os exércitos de ocupa-
ção usaram um novo mapeamento so-
cial. Nele não constam nem monta-
nhas, nem planícies, nem cursos de
água. Em vez disso, essas ferramentas
geolocalizam “insurgentes” em redes
sociais. O que os moradores fazem,
seus deslocamentos e seus relaciona-
mentos com outras pessoas são ras-
treados e visualizados nas telas de
controle. O inimigo (o “insurgente”)
aparece nesses mapas como o nó de
uma rede que é preciso eliminar.
“CONSTELAÇÕES DE SENTIMENTOS-ALVO”
Os softwares da contrainsurreição
se baseiam em modelos comporta-
mentais cuja concepção e funciona-
mento recorrem a dois tipos de recurso:
pesquisadores de ciências sociais, que
examinam as sociedades autóctones, e
uma vigilância estreita das populações.
Em 2008, a Seção de Pesquisa e Enge-
nharia do Departamento de Defesa
criou um programa de modelagem do
comportamento: o Human Socio-Cul-
tural Behavior Modeling Program (HS-
CB), no qual foi desenvolvido o projeto
de Radar Social. Esse software processa
megadados extraídos dos meios de co-
municação, de redes sociais e da inteli-
gência militar. Trata-se de detectar os
movimentos de coração e da opinião
que, entre as populações, poderiam in-
fluenciar o curso dos conflitos: um im-
pulso de simpatia por um novo líder
contestador, por exemplo, ou, ao con-
trário, uma manifestação de antipatia
em relação aos exércitos de ocupação.
Para conseguir isso, esse radar combi-
na a análise de conversas on-line e a
análise de sentimentos. Ele identifica
os principais tópicos discutidos pelos
usuários da internet e os associa aos
sentimentos expressos. Dessa forma,
desenham-se “constelações de senti-
mentos-a lvo”^1 que o ocupante explora
então por meio de campanhas de pro-
paganda ou de operações psicológicas
(Psyop). Enquanto os radares que equi-
pam aeronaves e navios detectam cor-
pos em áreas de confronto, o Radar So-
cial busca penetrar a espessura
psicossocial das sociedades para nela
detectar mudanças em tempo real.
O moral dos civis esteve no centro
das preocupações políticas e militares
e, portanto, das propagandas do Esta-
do, ao longo dos séculos XIX e X X.
Uma guerra, seja ela contrainsurre-
cional ou convencional, é difícil de ga-
nhar sem seu apoio, e as ciências so-
ciais e humanas têm sido usadas
regularmente para tentar conquistá-
-lo. Seus conhecimentos foram mobi-
lizados para aperfeiçoar as técnicas
de persuasão. Psicólogos, sociólogos
ou cientistas políticos trabalharam
para desenvolver esse tipo de tecnolo-
gia de controle das sociedades pelos
Estados. Os instrumentos de radio-
grafia social que surgiram no Iraque
pertencem a essa tradição, mas dife-
rem dela em pelo menos dois pontos.
Há ali uma ambição, próxima à fanta-
sia, de automatizar a detecção de in-
surreições e de instabilidades sociais.
Máquinas e computadores são substi-
tutos aqui para a análise humana. O
tempo “real”, do imediatismo, deve
substituir o longo tempo das observa-
ções e da interpretação. Saem os espe-
cialistas que murmuram visões con-
traditórias ao ouvido do senhor da
guerra: a automação colocou de lado,
tanto quanto possível, os intérpretes e
suas conjecturas. Em contrapartida,
ela mobiliza pesquisadores em ciên-
cias sociais e outros especialistas em
comportamento humano, que assina-
lam regularidades observadas nas so-
ciedades, as quais serão convertidas,
de perto ou de longe, em um algorit-