National Geographic - Portugal - Edição 227 (2020-02)

(Antfer) #1
NA ROTA DE UMA ESPECIARIA 97

que espécimes tão requintados tivessem sobrevi-
vido aqui durante tanto tempo, enquanto enor-
mes extensões das florestas norte-vietnamitas
eram abatidas pela indústria madeireira.
O acampamento à beira do rio era básico: um
gigantesco oleado azul assente sobre estacas de
bambu, num aterro que o pai de Lang outrora
construíra na encosta da montanha. No interior,
vi uma fogueira e uma cama de frondes secas de
thao qua. Era ali que a equipa de colheita iria co-
mer, dormir e torrar as vagens de cardamomo ne-
gro nos dois dias seguintes.
O sítio fervilhava de actividade porque Cho re-
crutara quase uma dezena de amigos, vizinhos e
parentes para o ajudarem na tarefa. “Somos pri-
mos”, disse um deles, Giang A Thao, quando lhe
perguntei por que razão concordara em fazer ta-
manho favor a Cho. “Ajudamo-nos um ao outro.”

A SAFRA DO CARDAMOMO começou na alvorada do
dia seguinte, após um pequeno-almoço constituído
por arroz, café instantâneo e fatias gordurosas de

to pior e as autoridades vietnamitas costumam
aceitar estas compensações. Ou pelo menos têm-
-nas aceitado até agora.
Os agricultores de cardamomo ainda enfren-
tam riscos. O valor crescente do produto levou
alguns aldeãos a roubar as colheitas dos vizinhos
e o agravamento das condições climáticas nos úl-
timos anos afectou a safra anual. A geógrafa Sarah
Turner, da Universidade McGill, no Canadá que
estuda a indústria do cardamomo, explicou que
há fortes probabilidades de os episódios extremos
de clima verificados nos últimos anos estarem re-
lacionados com alterações climáticas.
O caso da família de Lang exemplifica bem a si-
tuação. Lang e o marido, Duong, membro do gru-
po étnico muong, não precisam do cardamomo
para assegurar a subsistência, uma vez que gerem
uma empresa de turismo de caminhada. Mas o ir-
mão de Lang, Cho, que nunca se mostrou interes-
sado por essa opção profissional, ainda considera
esta cultura essencial para a sua prosperidade,
apesar dos riscos financeiros.


carne de porco salgada grelhadas na fogueira.
O terreno do cardamomo distribuía-se por dois
vales de montanha de declive suave. Cho dividiu o
grupo em duas equipas, que começaram a subir
leitos de rio paralelos. Cada agricultor levava uma
catana. A ideia consistia em extrair as vagens ver-
melhas cruas da base de uma planta, ao mesmo
tempo que se limpava a vegetação circundante.
Dessa maneira, a planta teria espaço para gerar
novas vagens antes da safra do próximo ano.
Durante muitas horas, os agricultores vogaram
pelos leitos dos rios, parando apenas para beber
água e enxugar as sobrancelhas. O ar era mais
fresco do que no vale mais abaixo e o Sol esconde-
ra-se atrás das ameaçadoras nuvens do horizonte.
Ao final da tarde, o grupo caminhou de volta ao
acampamento e fez uma fogueira suficientemente
grande para torrar e fumar um punhado de mon-
tes de cardamomo cru do tamanho de frigoríficos.
Vi algumas vagens mudarem de cor, de vermelho
rebuçado para castanho-café, emanando um forte
aroma medicinal durante o processo. A torragem
das vagens era essencial porque o peso das mes-
mas seria significativamente reduzido, facilitando
o transporte da colheita montanha abaixo.

O TRILHO ATÉ AO CARDAMOMO de Cho serpen-
teava entre arbustos que me davam pela cintura,
arranhando-me as pernas. Aproximávamo-nos da
cota de 2.150 metros de altura, tendo começado o
dia a cerca de metade dessa altitude. Lang, que
ganha a vida como guia de caminhada, estava a
ficar sem fôlego. Duong, em contrapartida, mostra-
va-se descontraído. “Mesmo que tivesse de andar
mais, poderia continuar a fumar,” brincou, com o
cigarro despreocupadamente pendurado na boca.
Chegámos ao local do acampamento perto do
crepúsculo. Cumprimentámos Cho, que viera an-
tes de nós para montar as tendas. Parei para con-
templar a paisagem. Centenas de plantas de car-
damomo da altura de cestos de basquetebol, com
espessas frondes verdes, ladeavam as margens do
leito de um rio vizinho. As frondes pareciam des-
locar-se pelo chão da floresta em vagas, seguindo
os contornos do ribeiro, como se fossem pincela-
das rodopiantes numa tela de Van Gogh.
Por cima do cardamomo, erguiam-se árvores
antigas cujos troncos com musgo e ramos retor-
cidos se elevavam a muitos metros de altura. Al-
gumas tinham um aspecto desgrenhado, quase
irreal. Perguntei a mim mesmo como era possível


Parei para contemplar a paisagem: centenas de plantas de cardamomo
da altura de cestos de basquetebol, com espessas frondes verdes.
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