National Geographic - Portugal - Edição 227 (2020-02)

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tínhamos terra e casa”, disse. “Fez-nos escravos.
Agora somos livres, sem país, sem terra nem casa.
Porque não nos dá um pedaço desta terra e nos
deixa construir uma Cidade Africana?” Era um
pedido de indemnização. Meaher ficou furioso.
A comunidade conseguiria comprar terra. Jun-
tando dinheiro, quatro famílias criaram raízes
em três hectares de terreno ainda hoje conheci-
do como Lewis Quarters, pois foi baptizado com
o nome de Charlie Lewis. A três quilómetros de
distância, o maior povoado, com 20 hectares, ani-
nhava-se entre pinheiros, ciprestes e zimbreiros.
Os novos proprietários construíram três dezenas
de casas de madeira colectivamente. Rodeadas
de flores, cada uma possuía uma horta e árvores
de fruto. Mais tarde edificaram uma escola e uma
igreja. A Igreja Baptista Old Landmark situava-
-se ao lado da terra de Abile e Kossola e estava
orientada para leste, na direcção de África. Nas
proximidades, ficava o seu cemitério. Chamaram
ao seu povoado African Town. Queriam estar em
África, mas estavam em Mobile.
As políticas públicas progressistas contribuí-
ram para a libertação das pessoas, mas a situação
estava prestes a mudar. Em 1874, no decurso da
campanha eleitoral de candidatura ao Congresso
dos EUA, o jornal “Mobile Daily Register” fez um
apelo aos brancos para “responderem à chamada
e exigirem a supremacia branca”.
Timothy Meaher pressionara os homens africa-
nos, que se tinham naturalizado em 1868, a votar
pelos Democratas, o partido pró-escravatura. No
entanto, duvidando que o fizessem, no Dia das
Eleições disse aos funcionários da mesa eleitoral
que eles eram estrangeiros. Charlie, Pollee e Cud-
jo foram mandados embora. Meaher montou no
cavalo e impediu-os de votar em dois outros sí-
tios. Os homens foram a pé até Mobile, a oito qui-
lómetros de distância. Disseram-lhes que, para
votarem, tinham de pagar um dólar cada um,
quase o salário de um dia. Pagaram. Receberam
um papelinho a comprovar que tinham votado.
Guardaram esse papel durante décadas.
Kêhounco e o marido, James Dennison, da
Carolina do Norte, aderiram ao primeiro movi-
mento reivindicativo de indemnizações. Após a
morte de James, Kêhounco continuou a requerer
que lhe fosse paga a pensão militar do exército da
União. No condado de Dallas, Matilda, de 72 anos,
caminhou 24 quilómetros para visitar o juiz do tri-
bunal de sucessões em Selma, inquirindo-o sobre
as indemnizações para os africanos arrancados
da sua terra natal.

Um dia, o capataz de Burns tentou chicotear
uma jovem mulher. Saltaram-lhe todos em cima,
agarraram a chibata e deram-lhe uma sova. Nun-
ca mais tentou quaisquer brutalidades com eles.
Segundo parece, porém, nos lugares onde os com-
panheiros de viagem se encontravam isolados, ou
havia apenas dois ou três homens na plantação,
eram maltratados. Redoshi (Sallie Smith) contou
que “os donos de escravos e os capatazes espan-
cavam-nos por tudo e por nada, quando nós não
compreendíamos o que diziam em americano”.
A maioria dos africanos manteve-se unida e
conservou as práticas da juventude. A comunida-
de de Atakora, no actual Benin, enterrava os seus
mortos em covas fundas, com os cadáveres envol-
tos em casca de árvore. Os yoruba mergulhavam
os recém-nascidos num riacho, procurando sinais
de vitalidade. Um casal fon tatuou no peito do seu
filho a imagem de uma serpente a morder a cau-
da, símbolo sagrado do reino do Daomé.
Durante cinco anos, os companheiros de via-
gem trabalharam nos campos de algodão, arroz e
cana-de-açúcar. Em Mobile, vários homens traba-
lharam em embarcações fluviais, alimentando as
fornalhas com toneladas de lenha, carregando e
descarregando fardos de algodão. Durante a Guer-
ra da Secessão, foram forçados a construir as fortifi-
cações da cidade e viveram em condições abjectas.
Por fim, no dia 12 de Abril de 1865, o exército da
União entrou na cidade. Os africanos comemora-
ram ao som de tambor.


MÃES E PAIS FUNDADORES


OS HOMENS ARRANJARAM trabalho nas serra-
ções, fábricas de pólvora e estações ferroviárias
de Mobile. As mulheres cultivavam legumes e
vendiam-nos de porta em porta. Para estruturar
a sua comunidade recomposta, escolheram um
chefe, Gumpa (Peter Lee), um nobre aparentado
com o rei de Daomé, e dois juízes, Charlie Lewis
e Jabe Shade, ervanário e médico. À semelhança
do que faria qualquer família, restabeleceram os
laços com os companheiros de viagem residentes
a cerca de 240 quilómetros de distância, no con-
dado de Dallas.
Subsistindo com rações escassas, poupavam o
que podiam, desejosos de regressar a casa, mas
não era suficiente. Por isso, definiram uma nova
estratégia, como Kossola explicou a Meaher. “Co-
mandante Tim, trouxe-nos do nosso país, onde

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