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C6 Caderno 2 QUARTA-FEIRA, 4 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
LEANDRO
KARNAL
S
empre tivemos problemas
com alguns corpos. O mais
antigo é o indígena. Apesar
de ser apenas do século 19, o qua-
dro de Victor Meirelles (Primeira
Missa no Brasil) trata do problema
bem anterior: o indígena ali cum-
pre o papel de espectador. Fazen-
do jogo sutil de palavras, ele assiste
(espectador) à liturgia branca e es-
pera pelo nascente Estado portu-
guês que se instala (expectador).
No mais, quando deixa de ser espec-
tador-expectador, ele incomoda.
“Índio burro, índio indolente, ín-
dia fácil”: todos os adjetivos indi-
cavam usos brancos para os cor-
pos indígenas. Negativos na maio-
ria. Havia também o indígena pre-
disposto à catequese europeia, an-
sioso pelo Evangelho, bom selva-
gem, cristão avant-la-lettre com
corpos arfantes pela água batis-
mal e pelo controle dos padres. O
indígena rousseauniano aparece
muito na literatura missionária e res-
surge no romantismo brasileiro. No
século 19, o corpo indígena é imagi-
nado como a morte de Moema (do
mesmo Victor Meirelles) ou como a
Iracema de José de Alencar. Mulher
indígena colaborando com o desejo
português e gerando o primeiro cea-
rense ou morta sobre a praia são no-
vos lugares para o velho papel dos
corpos, especialmente femininos.
O século 19 é o de um novo genocí-
dio e avanço sobre terras indígenas e
seus corpos. No início do 20, a obra de
Cândido Rondon traz uma nova pers-
pectiva, não privilegiando violência.
Porém, mesmo sendo muito útil à Re-
pública Brasileira ampliar a rede de
postes de telegrafia pelo sertão, nem
sempre a ação do “Marechal da Paz”
era uma estratégia de colocar os inte-
resses das terras indígenas em primei-
ro lugar. O contato pacífico de Ron-
don era mais ético do que violento,
sem dúvida, porém, o simples conta-
to com as doenças dos brancos ou o
mapeamento das terras abria um epi-
sódio complexo na história das tribos
e, a médio e longo prazo, fatal.
Depois de mais de 100 anos de deba-
tes antropológicos e mais de 500 de
genocídio sobre comunidades indíge-
nas, o século 21 não começou com bri-
lho. O general Hamilton Mourão, ho-
je vice-presidente da República, disse
em campanha que os indígenas ti-
nham tradição de indolência e os ne-
gros, de malandragem. A explicação
era clássica dos textos racistas do sé-
culo 19 e início do 20 e mostrava pou-
co sobre negros e indígenas e muito
sobre os interesses brancos sobre
seus corpos. Se você não quer ser meu
escravo na lavoura e nem trabalhar de
graça para mim, só pode ser malandra-
gem ou preguiça... A lógica perversa já
estava quase sepultada e volta com
força. O superior do general aprofun-
dou a ideia neste ano. Jair Bolsonaro
afirmou que “com toda a certeza, o
índio mudou, tá evoluindo. Cada vez
mais o índio é um ser humano igual a
nós”. Tenho dúvidas profundas se os
indígenas desejam se parecer conos-
co e com nossa sociedade. Desconfio,
mas é uma hipótese, que tenham ou-
tros padrões e metas. A questão volta:
indígenas continuam sendo um desa-
fio. Se ficam isolados em reservas atra-
palham, digamos, nosso nióbio e nos-
so grafeno. Se viram trabalhadores ur-
banos em um projeto de uma Pindora-
ma produtiva, são indolentes.
A Unicamp enfrenta um novo desa-
fio. O vestibular específico para os po-
vos indígenas incorporou centenas
deles (de dezenas de etnias distintas)
na vida universitária. O que seria um
bom aluno nascido no Amazonas, em
uma comunidade indígena, tendo o
português como segunda língua, e tra-
zido para uma das principais universi-
dades do País? Em primeiro lugar, de-
ve-se reconhecer a força de sua cultu-
ra, os saberes tradicionais e ter a pers-
pectiva do diálogo e cooperação. Pou-
cos narrarão algum episódio da Teogo-
nia de Hesíodo, porém muitos falarão
de sua cultura e seus antepassados
com orgulho. A relação com a terra,
com a preservação das florestas, é um
outro tipo de saber que impacta a so-
brevivência do planeta e beneficia to-
dos. Ao mesmo tempo, apresentar e
incorporar fundamentos das ciên-
cias, da formulação de hipóteses e de
outras formas de produção de conhe-
cimentos, é função da universidade.
Como tratar de um problema velho
e novo de supor a universidade den-
tro de uma perspectiva que não
pense a “evolução” do indígena co-
mo processo de ocidentalização ou
de fagocitose do grupo menor pelo
maior? Não há uma resposta sim-
ples, porém, é possível evitar os
processos de colonização e catequi-
zação que marcaram o passado. Os
estudantes indígenas possuem
voz, demandas e compreensão do
que buscam. Nos relatos de vários
colegas professores, a maior parte
dos estudantes afirma buscar co-
nhecimentos que melhorem a vida
de suas comunidades, sobretudo
nas áreas de educação e saúde.
Após o período de estudos, querem
retornar a seus grupos originais.
Não querem a supressão de suas
identidades: querem agregar co-
nhecimentos novos e contribuir
com os que trazem de suas comuni-
dades e tradições para que nossa
compreensão de mundo também
se amplie. Sem violência, sem idea-
lização e, sobretudo, sem corpos
sem vida. Agradeço ao meu amigo
José Alves de Freitas Neto, que co-
laborou com dados para o artigo e
está à frente do vestibular da Uni-
camp e das propostas envolvendo
indígenas. É preciso ter esperança.
O professor José Alves e a Uni-
camp têm muita.
Inverno
sombrio
Maria Rita Alonso
Lays Tavares
Ameaça do coronavírus, votação
do impeachment de Trump, tem-
pestade Dennis, prisão do magna-
ta de Hollywood Harvey Weins-
tein por casos de abuso sexual,
Brexit... A temporada internacio-
nal de desfiles chega ao fim de-
pois de um mês conturbado – no
qual a maioria das coleções de in-
verno refletiu, de alguma forma,
essa atmosfera sombria que acom-
panhou o noticiário. Se do lado de
fora dos desfiles os acessórios
mais vistos foram as máscaras hos-
pitalares, nas passarelas os estilis-
tas lidaram com o caos, cada um à
sua maneira – alguns evocando a
esperança de dias melhores, ou-
tros mergulhados em cenários
apocalípticos ou usando a moda
como canal de deboche e ironia.
Marcada por cancelamentos e
uma fila A que ganhava mimos
em forma de miniembalagens
de álcool em gel, o coronavírus
mudou a dinâmica dessa indús-
tria gigantesca que representa
mais de US$ 2.5 trilhões (de acor-
do com um report da McKinsey
dado pela Forbes). O desfile da
Giorgio Armani, em Milão, por
exemplo aconteceu a portas fe-
chadas em um teatro vazio e foi
transmitido online; enquanto a
designer francesa Agnès B assim
como cinco marcas chinesas –
Shiatzy Chen, Masha Ma, Uma
Wang, Calvin Luo e Maison Mai
- cancelaram totalmente suas
apresentações em Paris.
Na apresentação da Gucci, em
Milão, o grande circo da moda
foi exposto com dramaticidade.
A começar pela apresentação
que exibia os bastidores do desfi-
le, com modelos sendo maquia-
das e aprontadas em frente ao
público e o staff de criação fla-
nando uniformizado pelo palco.
Essa foi uma coleção repleta de
contrastantes e pequenas sub-
versões, com laçarotes, sapatos-
boneca, ternos xadrez descon-
juntados, calças curtas, saias
com babados dramáticos.
Na Balenciaga, uma tempesta-
de sinistra alagou a passarela fa-
zendo com que os modelos andas-
sem na água escura com suas ca-
pas laqueadas totalmente tea-
trais. Conhecido pelos desfiles
performáticos, o estilista da mar-
ca, Demna Gvasalia, veio da Geór-
gia para se tornar um dos nomes
de vanguarda da moda parisiense.
Depois de emplacar modelagens
superamplas e misturar elemen-
tos esportivos à alfaiataria, ele ago-
ra se inspirou na austeridade da
religião ortodoxa (de seu país de
origem) para apresentar um mini-
malismo com longas capas que
lembram batinas, paletós de om-
bros pontiagudos e peças brilhan-
tes de veludo ou vinil com ares fe-
tichistas.
Para Kanye West, só nos resta
rezar. O rapper norte-americano
armou um verdadeiro show de
louvor no domingo, 1.º, em Paris,
com 120 cantores gospel vestindo
a nova coleção da Yeezy. Na se-
gunda, mais uma apresentação, e
dessa vez quem cantou foi a sua
filha North West, de 6 anos.
Segundo Vanessa Friedman,
editora de moda do The New York
Times, todas essas notícias alar-
mantes acabaram praticamente
tirando do radar a fervente discus-
são sobre o papel da moda na mu-
dança climática e deixando o as-
sunto de lado durante as últimas
semanas. Sorte que temos Stella
McCartney, a estilista inglesa que
desde 2001 produz uma moda li-
vre de couro, peles e penas. Nesta
temporada, ela reverenciou a na-
tureza com bijuterias no formato
de animais selvagens.
Outro suspiro de esperança
que nos faz crer em uma moda
possível foi dado por John Gallia-
no na Maison Margiela, que reve-
lou que enviou sua equipe para
brechós e mercados de caridade
para encontrar peças antigas que
podem ser restauradas e retraba-
lhadas, criando ali uma nova vida
a partir do antigo. Segundo ele, as
peças terão uma etiqueta especial
com local e período de origem da-
quele item. O estilista virou o res-
taurador de arte!
Maria Grazia Chiuri, primeira
designer mulher a assumir o co-
mando da maison Dior, coinci-
dentemente apresentou sua co-
leção no dia seguinte à condena-
ção de Harvey Weinstein. O fe-
minismo e as mulheres fortes es-
tão presentes na passarela, cla-
ro. Afinal moda está sempre es-
pelhando o contexto – mesmo
que de modo estilizado e alta-
mente glamourizado.
Sayegh
TV
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04/03 às 20h35
LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS
E AOS DOMINGOS
O corpo incômodo
Estudantes indígenas buscam
conhecimentos que melhorem
a vida de suas comunidades
VALERIO MEZZANOTTI/THE NEW YORK TIMES
Moda. Temporada de desfiles internacionais
termina espelhando o clima sinistro dos
noticiários e a ameaça do coronavírus
Balenciaga. Moda
dramática em
performance na
passarela alagada