O Estado de São Paulo (2020-03-16)

(Antfer) #1
Colaboração
Cecília Ramos [email protected]
Marcela Paes [email protected]
Sofia Patsch [email protected]

Aos 66 anos, “mais de 60 de-
dicados à leitura”, como faz
questão de ressaltar, Mario
Sergio Cortella é profes-
sor, filósofo, escritor, pales-
trante, youtuber e, por cau-
sa disso tudo, digital influen-
cer, embora não aprecie
muito o termo. “Antigamen-
te, multitarefa era impresso-
ra; agora, todos nós somos
um pouco.”
Mas com limites. Ele ignora
o WhatsApp, “pois não teria
tempo para responder nem
para ver todos os GIFs de ga-
tinhos e cachorrinhos”. Tam-
bém não usa Twitter, porque
se considera um pouco para-
noico: “Não gosto de seguir
nem de ser seguido”, disse
ele à coluna. Por outro lado,
coleciona likes e corações de
uma legião de fãs no Face-
book (pouco mais de 1,7 mi-
lhão) e no YouTube (cerca
de 877 mil). Homem devota-
do às letras e à educação, Cor-
tella, que já foi secretário da
pasta durante a gestão da pre-
feita Luiza Erundina, em São
Paulo, se deu como missão
de vida traduzir a filosofia e
o pensamento literário para
uma forma mais simples,
“mas jamais simplória”. E
tem conseguido.
Autor de mais de 40 livros
(solo ou na companhia de
nomes, como Luiz Felipe
Pondé, Mauricio de Sousa,
Leandro Karnal e a monja
Coen), acaba de lançar Ain-
da Dá!: A Força da Persistên-
cia, em parceria com o jorna-
lista Paulo Jebaili, “amigo
quase desde o século passa-
do”. O livro aborda a busca
da excelência, “aquele esfor-
ço de ir além, de ultrapassar
limites, de avançar, de fazer
melhor”, como ele explica.
Seria a receita para o Brasil?
Talvez. “Mas precisamos
ser mais otimistas”, avisa.
“Não o otimista ingênuo,
mas o otimista crítico, aque-
le que, em vez de amaldi-
çoar a escuridão, tenta acen-
der uma vela”, explica, citan-
do a Bíblia. Leia abaixo a en-
trevista com o professor
que quase se tornou monge
na juventude.

l O que dá mais trabalho: es-
tudar, ensinar ou escrever?
Só é possível ser um bom es-
critor se você é um bom lei-
tor. O livro mais difícil de
publicar não é o primeiro, é
o segundo. Porque o primei-
ro pode ter sido uma coinci-
dência de fatores, algo que
aconteceu de maneira ca-
sual, encontrou o momento
e a época certos. Os mais de
60 anos como leitor me de-
ram serenidade para escre-
ver. Estudar e ensinar são
atividades menos comple-
xas do que escrever.

lBasta se sentar e começar?
Como eu sou uma pessoa
da fala, um docente, muitas

vezes eu “falo” o texto e gravo.
Há cerca de 13 anos, o Paulo Je-
baili se senta comigo para me
entrevistar. Alguns livros saí-
ram assim, como Qual é a Tua
Obra e A Sorte Segue a Cora-
gem. Porque, quando você tem
um interlocutor, as ideias vêm
com mais facilidade. O Oscar
Wilde dizia que, ao viajar, car-
regava sempre um diário escri-
to por ele mesmo, para ter al-
guma coisa boa para ler. Mas
eu não sou sempre uma ótima
companhia para mim mesmo.

lFinalmente alguém que admite
isso abertamente...
Sou muito limitado quando es-
tou sozinho. Só quando temos
outras pessoas por perto, a con-
vivência, o enfrentamento de
ideias, a discussão, o afeto, é
que conseguimos crescer. Para
quem escreve, existe uma regra
geral que é “deixar dormir”,
“deixar descansar”, para que vo-
cê possa olhar para o trabalho
de outra forma mais tarde.

lIsso possibilita que se faça
escolhas melhores?
Sim, embora toda escolha seja
uma abdicação. Quando esco-
lho algo, estou “desescolhen-
do” todo o restante. Mas você
só faz escolhas se tiver crité-
rios claros, senão não é esco-
lha feita por você, é acaso.
Atualmente, estamos tendo de
fazer mais e mais escolhas. E
algumas são muito perigosas.

lMas quem julga se as escolhas
são boas ou ruins?
O resultado. Estamos em um
impasse, uma encrenca: a natu-
reza segue com sua forma de

ação e nós somos vitimados
sem que ela tenha uma inten-
ção malévola. Incêndios, secas,
nevascas, isso tudo sempre
aconteceu, a natureza indepen-
de de nós. A questão é que es-
colhemos um modo de viver,
de consumir, de produzir, que
é altamente biocida. As esco-
lhas das pessoas que estão na li-
derança política, econômica e
social dos grandes grupos hu-
manos (e também as escolhas
individuais) têm efeitos sobre
o mundo.

lQue tipo de efeitos concretos?
Hoje vivemos uma crise de con-
dições de vida, de condições
ambientais, de convivência, ge-
rada por nós. Ela não veio de
uma divindade ou
de um deus lá de
cima.

lFoi essa com-
preensão que o fez
trocar Deus pelo
ser humano?
Do ponto de vista religioso,
não houve troca. Não mudei de
lado, mudei de lugar dentro do
mesmo lado. Tinha acabado de
entrar na universidade, em Filo-
sofia, e resolvi ter uma expe-
riência religiosa mais densa.
Não queria ter uma visão super-
ficial da religião. Fui para um
convento, a Ordem dos Carme-
litas Descalços, e fiquei três
anos lá, enquanto estudava. E
decidi que aquela não era a ro-
ta que eu queria seguir. Foi
uma escolha. Será que eu teria
sido mais feliz como religioso?
Não sei, porque não fiz essa es-
colha. O “se” em relação ao pas-
sado é apenas poesia.

lMas o que é ser feliz?
Ser feliz é você ter a percepção
de que não está descartando a
vida. De que, quando ela termi-
nar, não a terá jogado fora. A vi-
da é única, é estupenda, um
mistério maravilhoso. Mas
também é circunstância. A feli-
cidade não é um fato contínuo,
é uma ocorrência. A questão é
que o ser humano tende a vi-
ver ou no passado ou no futu-
ro, porque o momento presen-
te é muito difícil.

lVocê faz esse exercício?
Como todo ser humano, tenho
dificuldade de fazê-lo. Até por-
que inventamos parte de nos-
sas memórias, temos a nossa
avaliação própria sobre o que
aconteceu. Por-
que o estar agora
no tempo nos le-
va à pergunta: “Is-
so que estou fa-
zendo, nesse mo-
mento, me levará
aonde?”. E essa é uma ação
muito importante, porque é
preciso cautela para não se le-
var uma vida automática, ro-
bótica, em que eu simplesmen-
te vou existindo. A felicidade
não vem sempre, não vem o
tempo todo, ela vai embora.

lO projeto dos dinossauros era
melhor do que o do ser humano?
Não, os dinossauros não ti-
nham um projeto. Simples-
mente executavam uma or-
dem que podemos chamar de
instinto, e nós, humanos, não
temos instintos que não possa-
mos controlar.

lE o instinto de sobrevivência?

Nós somos capazes de nos ma-
tar, somos capazes de comer
picanha com gordura. Instinto
sexual? Não, sexo sem consenti-
mento é brutalidade, violência.

lMas, às vezes, a gente tem o
instinto de matar o outro.
Isso não é instintivo, é uma rea-
ção possível. Tanto que a lei
considera um atenuante se vo-
cê, ao atirar em alguém, estiver
movido por súbita e violenta
emoção. A ideia das estradas
de ferro – pare, olhe e pense –
continua valendo. Os dinossau-
ros não podiam escolher, por-
que o instinto conduzia sua
conduta. Mas nós temos de es-
colher. Sartre dizia que somos
obrigados a ser livres.

lMas a pessoa tem mesmo con-
trole sobre isso? Ela escolhe?
Santo Agostinho, lá no século
5, dizia que, quando você tem
dois prisioneiros em uma cela,
provavelmente um deles ficará
o tempo todo olhando para o
chão, e o outro ficará olhando
além das grades, pensando “eu
vou sair daqui, há um sol lá fo-
ra”. Para ambos é questão de
escolha. Ou senta e chora ou le-
vanta e enfrenta.

lE quem define o que é ser bom
caráter, o que é ser ético?
Para mim, não é a ocasião que
faz o ladrão, a ocasião apenas
o revela. Ser ladrão ou não é
uma decisão anterior à oca-
sião. Como a gente é livre, tem
coisa que eu quero mas não
posso, coisa que eu posso mas
não devo, coisa que eu devo
mas não quero. Ora, isso é éti-
ca: como fazer com que aquilo

que eu quero seja aquilo que
eu posso e aquilo que eu de-
vo. É assim que se consegue
ter harmonia.

lO poder revela ou o poder
transforma?
As duas coisas. Pode me
transformar em uma pessoa
mais generosa, mais amável,
mas pode me transformar
também em um déspota, al-
guém que gosta do poder pe-
lo poder. A pergunta é: será
que já nasci como sou, com
todas as minhas virtudes,
qualidades, defeitos? Se eu
não acreditasse que somos
capazes de nos transformar
para melhor, não seria pro-
fessor, não seria educador.

lO senhor é um otimista.
Ainda bem! Acho que todo
pessimista é um grande va-
gabundo. Porque a melhor
maneira de não precisar fa-
zer nada é acreditar que não
adianta tentar fazer alguma
coisa. E a melhor maneira
de não precisar se mexer e
deixar tudo parado é achar
que não adianta se mexer.

lEntão, o otimista não é um
pessimista mal informado?
Eu quero ser um otimista
crítico, não ingênuo. O oti-
mista crítico é aquele que, pa-
ra usar uma frase bíblica, em
vez de amaldiçoar a escuri-
dão, tenta acender uma vela.

lHoje, com as redes sociais,
existe uma vigilância constan-
te, parece que temos uma câ-
mera sobre as nossas cabe-
ças o dia inteiro. Isso inibe
ações antiéticas?
Ah, inibe bastante. A gente
fica mais cauteloso em rela-
ção ao que faz, fica bem
mais vigilante.

lE mais humilde...
E também fica mais humil-
de, que é uma característica
excelente. Porque a pessoa
humilde é aquela que sabe
que não sabe tudo, aquela
que abre a cabeça para as
coisas que ainda não conhe-
ce. Humildade é a capacida-
de de entender que eu sou
bastante, mas não sou tudo.
Que eu sou muito, mas não
sou o resto. Meu filósofo
predileto, René Descartes,
propõe a dúvida metódica.
Não duvidar por duvidar,
mas duvidar para ter clareza
da certeza que poderá vir.
Por isso, a humildade é a ca-
pacidade também de aco-
lher a dúvida.

lMas o excesso de dúvida
não impede a pessoa de deci-
dir? Não paralisa?
Se você só tiver dúvida, não
decide. Mas, se não tiver
dúvida alguma, também vai
correr o risco de decidir er-
rado. A dúvida metódica é si-
nal claro de inteligência e
humildade.

Blog: estadão.com.br/diretodafonte Facebook: facebook.com/SoniaRacyEstadao Instagram: @colunadiretodafonte

‘Todo pessimista é um grande vagabundo’


RICARDO CHICARELLI/ESTADÃO

Vantagens para


você presentear


e viver as melhores


experiências


O clube que paga a sua assinatura oferece


DESCONTOSEXCLUSIVOS


DEATÉ70%EM:


Cinemas, parques, farmácias, restaurantes,
lojas, bem-estar, cursos e muito mais!

Tudoissoemmaisde200parceiros.


Ainda não faz parte do Clube+Estadão?
Acesse: assine.estadao.com.br/clubemais1 ou ligue
0800 770 2166 e faça sua assinatura*
*Válidosomenteparaassinaturadigitalcompletaouimpresso
(finsdesemanaetodososdias).Imagensmeramenteilustrativas.

Influencer de sucesso, ainda que involuntariamente, filósofo lança livro sobre excelência


DIRETO DA FONTE


SONIA RACY


Encontros Mario Sergio Cortella


‘SOU MUITO
LIMITADO
QUANDO ESTOU
SOZINHO’

%HermesFileInfo:C-2:20200316:
C2 Caderno 2 SEGUNDA-FEIRA, 16 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

Free download pdf