O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
Pandemia
que assolou o
planeta no fim
da 1ª Guerra
matou até o
presidente do
Brasil, Rodrigues
Alves, e guarda
semelhanças
com atual surto

Desde o teatro
grego, a arte se
preocupou em
retratar os
efeitos das mais
graves doenças
transmissíveis,
em obras que
vão de Camus a
Boccaccio

NAS LETRAS DA


PESTILÊNCIA


Aliás, Cultura


José Roberto Walker ]

O mundo estava em guerra havia mais de quatro
anos quando as primeiras notícias sobre a gripe
espanhola saíram nos jornais de São Paulo, em
setembro de 1918. Era outra epidemia que se origi-
nava nas trincheiras. Milhões haviam morrido e o
horror já não causava espanto.
No Brasil, as preocupações começaram quando
a Missão Médica Brasileira, enviada à França para
auxiliar nos serviços de socorro aos combatentes,
foi atingida pela gripe, assim que o navio fez escala
no porto de Dacar. Os membros do grupo saíram
do Brasil como heróis e logo se soube que mais de
cem haviam sido dizimados em poucos dias. Foi a
primeira vez que se ouviu falar em brasileiros mor-
tos pela gripe espanhola.
As notícias pioraram rapidamente. Em outubro,
os jornais anunciaram a erupção da epidemia em
Recife, Salvador e Rio. Ela vinha pelos navios e as
cidades portuárias eram as primeiras a serem atin-
gidas. Logo a capital se viu tomada pela gripe e os
mortos chegaram às centenas.
No meio de outubro a doença finalmente fez a
sua aparição em São Paulo. Um time carioca veio
para uma partida de futebol e alguns atletas tive-
ram febre. O jogo foi cancelado, mas a doença ime-
diatamente se propagou. Na quarta-feira, 16 de
outubro, os jornais noticiavam a chegada da in-
fluenza espanhola.
A abordagem era otimista e o Serviço Sanitário
previu que a epidemia não causaria grandes danos
e que, embora altamente contagiosa, não passava
de gripe comum e as mortes eram causadas por
males já existentes. Na capa de um dos principais
jornais da cidade, apareceu a notícia: “Pinga com
limão também cura a influenza”.
A cidade demorou para compreender o que a
aguardava. São Paulo havia crescido espetacular-
mente nos anos anteriores. Em 1890, tinha apenas
64 mil habitantes e, em 1918, já havia passado mui-
to dos 500 mil. O progresso era contínuo, havia
trabalho para todos e ninguém queria acreditar
em más notícias.
A gripe se espalhou rapidamente, o número de
infectados aumentou e logo atingiu centenas por
dia. No dia 22 de outubro ocorreu a primeira mor-
te. A imprensa exigia providências imediatas. As

escolas suspenderam as aulas e o Mappin Stores, a
maior loja de departamentos da cidade, anunciou
que funcionaria somente até às cinco da tarde.
Apesar disso, as mortes se tornaram diárias e, em
25 de outubro, o governo decretou feriado em São
Paulo e Santos.
Todos temiam a situação do Rio, onde os mor-
tos já eram milhares. A cidade estava à beira do
colapso e jornais falavam em corpos abandonados
nas ruas. Entre os doentes estavam o presidente
Venceslau Brás e o presidente eleito, Rodrigues
Alves, e discutia-se o adiamento da posse.
Seria assim também em São Paulo? Era a pergun-
ta que todos faziam.
No dia 1 de novembro, os mortos passaram de
cem. O Serviço Sanitário pediu que a população
não saísse mais de casa e os remédios recomenda-
dos eram a vaselina mentolada, gargarejos com
água iodada e sal de quinino. Mas ninguém acredi-
tava que fizessem efeito. O que mais assustava era
o número de casos novos todos os dias. Era fácil
fazer as contas e prever que a mortalidade subiria.
No entanto, havia muita solidariedade. Empre-
sas e particulares cederam automóveis para o aten-
dimento aos doentes. Os escoteiros organizaram
uma tropa especial que fazia entrega de remédios.

Clubes e associações montaram hospitais de emer-
gência e o Palestra Itália instalou “um moderno
sanatório, com 100 leitos” na rua Líbero Badaró.
Em contrapartida, o cemitério da Consolação, per-
manecia iluminado “com luz elétrica de emergên-
cia” e os enterros varavam à noite.
Para os paulistanos a vida se transformara em
loteria. Os novos casos chegaram a cinco mil por
dia, mais ou menos 1% da população da cidade, e já
não havia médicos para todos. Por falta de pessoal,
os grandes jornais faziam edições reduzidíssimas.
No Estado, até Monteiro Lobato assumiu um pos-
to na redação, para suprir a falta de jornalistas.
A gripe dominou a cidade e quem não foi atingi-
do, teve de cuidar dos doentes. Os enterros foram
simplificados ao máximo e muitas vítimas eram
levadas ao cemitério amontoadas precariamente
em caminhões ou nos bondes que a Light reservou
para esse trabalho macabro. A Espanhola era a úni-
ca preocupação e, quando a guerra finalmente aca-
bou, com o armistício de 11 de novembro, a notícia
dividiu a primeira página dos jornais com as infor-
mações sobre a epidemia.
No auge do surto, em 14 de novembro, morre-
ram 279 pessoas em São Paulo. No dia seguinte, o
presidente eleito, Rodrigues Alves, doente, não to-
mou posse e faleceria semanas depois. A partir do
dia 15, os números começaram a declinar. Na ter-
ceira semana do mês, morreram 905 pessoas e to-
dos viram isso com alívio.
Oswald de Andrade, nas suas memórias, resu-
miu a situação: “a gripe foi como veio”. A cidade
aos poucos recuperou a normalidade. As fábricas
voltaram a funcionar e o comércio reabriu as por-
tas. Ao final de tudo, os mortos em São Paulo fo-
ram 5.500 e mais de duzentos mil ficaram doentes.
Quando teatros e cinemas reabriram, A Gazeta
relatou que “a cidade apresentou um aspecto festi-
vo. À noite, todas as casas de diversões lograram
um público avultado, tendo estado animadíssi-
mas as ruas do Triângulo até depois das 22 horas.”
Era a vida, que resistia a todos os flagelos e os
sobreviventes celebravam a sua própria vitória so-
bre a morte.

]
É AUTOR DO ROMANCE HISTÓRICO ‘NEVE NA MANHÃ DE
SÃO PAULO’ (COMPANHIA DAS LETRAS)

Sérgio Augusto


Seguindo o exemplo dos florentinos do Decame-
ron de Boccaccio e do príncipe Prospero de Ed-
gar Allan Poe, fui me entocar, provisoriamente,
o mais longe da pandemia de coronavírus ao
meu alcance.
Retiro modesto, em nada comparável à vila
toscana em que três homens e sete mulheres
(uma delas autora da ideia) decidiram se refu-
giar durante dez dias, fugindo da peste bubônica
que devastou o norte da Itália entre 1347 e 1352, e
à encastelada abadia na qual Prospero, também
em fuga de uma sanguinolenta epidemia viróti-
ca, hospedou seus numerosos convivas, no con-
to A Máscara da Morte Vermelha.
Na abadia, os cortesãos do príncipe comem,
bebem à tripa forra e se divertem com espetácu-
los de bufões, dançarinos e algumas bizarrices,
até que, ao cabo do quinto ou sexto mês de reclu-
são, um baile de máscaras põe no meio do salão
uma figura espectral escarlate que é a Morte em
pessoa. Na quarentena de Decameron, os dez
autoasilados contam histórias, paliativo shera-
zadiano com dupla serventia: afirmar a vitória
da vida sobre o que a doença representa e abafar
os gritos de dor e desespero do lado de fora. A
escumalha que se dane.
Sempre foi assim. O tal um por cento que de-
tém 90% das riquezas do planeta se sai bem em
todas. Os castelos e abadias de nosso tempo são,
li há dias no site da revista eletrônica Vice, os
luxuosíssimos condomínios para bilionários
instalados naqueles silos subterrâneos que ar-
mazenavam mísseis intercontinentais dos
EUA, durante a Guerra Fria. Abandonados e co-
mercializados por uma imobiliária chamada Sur-
vival Condo, têm 15 andares abaixo do solo e
asseguram proteção total dos condôminos a epi-
demias, ataques de bactérias e produtos quími-
cos, cinzas vulcânicas, meteoros e – atentem ao
detalhe – “perturbações populares”. Blindagem
igual os privilegiados nunca tiveram.
Sem tanta gente para contar histórias, irei, hu-
mildemente, me limitar a ler quantas puder na
quarentena que essa nova Peste Negra nos impôs.
Ler é o que uma parte considerável da humani-
dade anda a fazer, informam as gazetas estran-
geiras, sem enconder a suspresa com os recen-
tes piques nas vendas de dois romances em parti-
cular: A Peste, de Albert Camus (1947), e Ensaio
Sobre a Cegueira, de José Saramago (1995).
São duas alegorias políticas. Configurar os na-
zistas como ratos que infestam e espalham a pes-
te bubônica na “feia e tranquila” cidade de Orã,
na Argélia francesa, foi a maneira mais engenho-
sa que Camus encontrou para retratar as tropas
alemãs que então ocupavam a França. A cegueira
branca imaginada por Saramago se expande co-
mo um vírus e só livra os olhos de uma mulher.
Em seu rastro de destruição pessoal, social e eco-
nômica, a cegueira generalizada põe em xeque a


ganância, o poder, a obediência e a vergonha.
O interesse popular por epidemias, pande-
mias e pragas similares é tão antigo quanto a
existência de tais pestilências. Desde Homero,
Sófocles e Tucídides, a história, a prosa e o tea-
tro gregos estão cheios de referências aos flage-
los daquele tempo.
Os poemas épicos e as tragédias clássicas não
apenas entretinham mas também ajudavam a
plateia a entender melhor o sofrimento huma-
no, e esse também tem sido o papel de livros
como os citados – além de outros, tão distintos
entre si como Um Diário do Ano da Peste, de Da-
niel Defoe; Os Noivos, de Alessandro Manzoni
(tendo como pano de fundo a praga que atingira
Milão cem anos); Dança da Morte, de Stephen
King (primeira aparição do demoníaco e necro-
mante vilão Randall Flagg); e Estação Onze, best
seller mundial da canadense Emily St. John Man-
del – e de filmes como Contágio, de Stephen
Soderbergh, que em 2011 antecipou o covid-19
com impressionante coincidência de detalhes.
Reconheço o componente sadomasoquista
desse relacionamento, mas seus efeitos benéfi-
cos, sobretudo porque didáticos, são maiores.
A peste bubônica ceifou em seis anos cerca de
60% da população europeia. Boccaccio começou
a escrever Decameron em 1353, um ano depois da

devastação. Seu impacto sobre a psique e a cultu-
ra perdurou por alguns séculos, especialmente
nas crenças religiosas e nas artes plásticas.
São Sebastião, o santo padroeiro do Rio de
Janeiro, despontou na mitologia cristã como
protetor das vítimas da peste, tida como a mais
devastadora de todos os tempos, e com esse
atributo foi retratado por Mantegna, El Greco e
Rubens. Também a Dança da Morte e a iconogra-
fia cadavérica (o emblema dos piratas, inclusi-
ve) foram inspiradas pela morbidez cultivada
na segunda metade do século 14, e ainda em alta
no século seguinte, quando o muralista sueco
Albertus Pictor pintou a Morte jogando xadrez,
futuro embrião do filme O Sétimo Selo, de Ing-
mar Bergman.
Para se ter a medida do appeal que ficções
articuladas em torno do caos epidêmico exer-
cem sobre o leitorado, um dos livros mais espe-
rados para este mês, nas livrarias americanas, é
The End of October, de Lawrence Wright, reputa-
do redator da revista The New Yorker. Seu narra-
dor é um microbiólogo às voltas com as conse-
quências de uma pandemia global. Wright reve-
lou ter ficado assustado com a semelhança en-
tre o que contou no romance e o que tem lido no
noticiário dos últimos dias. Se fosse possível,
até processaria o covid-19 por plágio.

COMO A GRIPE ESPANHOLA PAROU SÃO PAULO EM 1918


ACERVO BIBLIOTECA GUITA E JOSÉ MINDLIN - 2/11/1918

Emergência. Enfermaria improvisada no Rio de Janeiro em 1918

MUSEU DO PRADO

Pragas. ‘O Triunfo
da Morte’ (1562),
de Pieter Bruegel

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E2 Aliás DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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