O Estado de São Paulo (2020-03-22)

(Antfer) #1
Marcos Guterman

O historiador inglês Peter Frankopan, uma das
jovens estrelas da Universidade de Oxford, espe-
cializou-se no intercâmbio econômico, religioso e
cultural entre o Ocidente greco-romano cristão e
o Oriente multifacetado da Ásia Central, das este-
pes russas e do mundo islâmico. Desse interesse
surgiu o livro O Coração do Mundo, lançado no Bra-
sil pela Crítica, que se propõe a jogar luz sobre essa
complexa relação – e a partir dela, de maneira imo-
desta, oferecer uma “nova história universal”.
O eixo e ponto de partida do trabalho de Franko-
pan é a Rota da Seda, nome genérico que se deu às
rotas comerciais que ligavam o extremo oriente à
Europa no mundo antigo. Em seu início, servia
para que os chineses vendessem sua preciosa seda
aos europeus abastados. Em pouco tempo, a rota
se prestou não somente ao comércio de muitos
outros produtos, mas às relações (e choques) en-
tre dois mundos profundamente distintos.
Habilmente, Frankopan reconstitui as etapas
mais importantes dessas relações, na melhor tradi-
ção da historiografia que privilegia a longa dura-
ção, para proporcionar ao leitor um ponto de vista
radicalmente distinto da produção habitual, que
tem como centro o Ocidente. É nisso que o histo-
riador se apoia para dizer que está a produzir uma
“nova história” – o que é obviamente um exagero.
Na verdade, o que ele chama de “nova história” é
uma tentativa de questionar as certezas ociden-
tais em relação ao Oriente. Ou, em suas próprias
palavras, “uma alternativa de olhar a História”.
Trata-se de um objetivo plenamente válido,
pois a História só renova sua importância quando
se aventura fora da zona de conforto, em que as
perguntas já vêm respondidas, a partir de convic-
ções ideológicas. O risco, contudo, é trocar uma
ideologia por outra. Ao longo das 688 páginas de
seu impressionante livro, Frankopan não esconde
sua simpatia pelo Oriente, seu objeto de estudo, e
tende, em várias passagens, a exagerar virtudes de
povos orientais apenas como meio de ressaltar o
que enxerga como defeitos insanáveis dos povos
ocidentais. “O mundo antigo era muito mais sofis-
ticado e interligado do que costumamos às vezes
imaginar”, escreve Frankopan, para em seguida
dizer que “encarar Roma como progenitora da Eu-
ropa Ocidental omite o fato de que ela em muitos
aspectos era moldada por influências do Oriente”.
Nessa toada, o autor diz, a todo momento, que a
Historiografia ocidental – especialmente a partir
da expansão ultramarina no final do século 15 e
começo do 16, que deslocou o centro do mundo
para a Europa – manipulou o passado para encai-
xá-lo no seu discurso de superioridade e poder
sobre o Oriente, dando à Grécia e a Roma o peso de
berço da civilização. Ele dá a entender que pouco
do que foi produzido sob esse espírito tem valor
como História. Trata-se de uma visão discutível.
A ser assim, deveríamos reservar ao lixo da histó-
ria, por exemplo, a produção do Iluminismo, movi-

mento intelectual dos séculos 17 e 18 que ganhou
esse nome, por parte de seus orgulhosos contem-
porâneos, justamente para contrastar com a “ida-
de das trevas” medievais. Hoje se sabe que nem as
trevas da Idade Média foram tão trevosas nem as
luzes do Iluminismo foram tão reluzentes – Ador-
no e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimen-
to (1969), chegaram a dizer que o Iluminismo, ao
reduzir todos os fenômenos do mundo a teorias
alegadamente racionais, igualou-se à imaginação
mítica medieval que pretendia superar. Nem por
isso desprezamos a produção intelectual iluminis-
ta, que em grande medida continua em vigor e
muito influente até os dias de hoje. Do mesmo
modo, não parece sensato desqualificar a Historio-
grafia ocidental em relação ao Oriente porque, em
algum momento, serviu a propósitos políticos.
Ainda assim, Frankopan presta inestimável ser-
viço, como historiador, ao chamar a atenção para o
problema da visão deturpada legada pelo pensa-
mento imperialista europeu do século 19, que justi-
ficou e ainda justifica toda sorte de agressões oci-
dentais na Ásia e na África como corolário da “infe-
rioridade” e da “incivilidade” dos povos orientais
e africanos – tão bem retratado no poema O Fardo
do Homem Branco (1898), em que o poeta inglês
Rudyard Kipling incitava os americanos a travar
“guerras selvagens pela paz”. Teria sido igualmen-
te importante, contudo, que o autor lembrasse,
como faz o jornalista holandês Ian Buruma em seu
ensaio Ocidentalismo (2004), que a mentalidade
imperialista é encontrada igualmente no Oriente


  • a expansão do império japonês a partir do final
    do século 19, por exemplo, se deu à custa das “ra-
    ças inferiores”. Para muitos orientais, o Ocidente,
    como mostra Buruma, é fonte de inquietação, de-
    cadência e caos cosmopolita, e por ameaçar a or-
    dem religiosa com questionamentos científicos,
    deve ser combatido inclusive com violência terro-
    rista. Nesse aspecto, o nazifascismo, com seu anti-
    racionalismo radical, foi fonte de inspiração para
    ideólogos nacionalistas japoneses e árabes.
    Frankopan parece inclinado a uma certa com-
    placência com o Oriente, relevando-lhe a violên-
    cia ou colocando-a na perspectiva de uma respos-
    ta quase natural ao colonialismo ocidental. O au-
    tor faz comparações e traça paralelos no esforço
    de demonstrar que nossa percepção sobre a supe-
    rioridade econômica e cultural do Ocidente ante o
    Oriente é construída, não é natural, e que houve
    momentos na história em que o contrário foi ver-
    dadeiro. Diz, por exemplo, que, na Idade Média
    europeia, “enquanto o mundo muçulmano deleita-
    va-se com inovações, progresso e novas ideias,
    boa parte da Europa cristã atrofiava-se na melan-
    colia, incapacitada pela escassez de recursos e fal-
    ta de curiosidade”. Naquela época, ironiza Franko-
    pan, os fundamentalistas eram os cristãos, e não
    os muçulmanos.
    É um tanto infantil essa tentativa de “virar o
    jogo” a favor do Oriente, que também construiu
    uma poderosa historiografia contrastando sua su-


posta superioridade cultural com a decadência oci-
dental. Ora, a leitura dos vestígios históricos sem-
pre serviu a discursos políticos, e uma historiogra-
fia que não salienta esse aspecto, ainda mais uma
que se pretende “nova”, não cumpre a função es-
sencial de encontrar no passado as raízes do modo
como pensamos no presente.
Fiel ao propósito de recolocar o Oriente no cen-
tro da História, Frankopan qualifica a antiga Rota
da Seda como o “sistema nervoso central do mun-
do”, responsável por transformar a região num
lugar infinitas vezes mais próspero e desenvolvido
que o Ocidente. Apesar dessa importância, diz o
historiador, trata-se de objeto de estudo ignorado
pela historiografia ocidental graças à visão de que
o Oriente é uma região periférica. Nesse sentido,
diz corretamente que “o presente varreu o passa-
do”. Contudo, é fato também que tal riqueza não
foi capaz de produzir progresso efetivo, ao contrá-
rio do que aconteceu na Europa, em que houve
enorme impulso tecnológico a partir da ascensão
da burguesia – classe inexistente ou irrelevante
nas sociedades fortemente hierarquizadas de
grande parte do Oriente. Esse aspecto também
escapa à análise de Frankopan, embora seu pró-
prio trabalho tenha abundantes elementos para
que ele pudesse fazê-lo, se quisesse.
O livro de Frankopan atravessa séculos de rela-
ção entre Oriente e Ocidente tendo como foco
particular a economia, desde o encantamento ro-
mano diante das riquezas e do prazer que as dis-
tantes terras orientais inspiravam. Foi esse co-
mércio que estabeleceu as bases para o cruzamen-
to de religiões e culturas – estar ao lado do “deus
certo” significava assegurar prosperidade, num
jogo com múltiplas implicações políticas e so-
ciais, todas abordadas com brilhantismo e erudi-
ção por Frankopan. Nessa relação acidentada, ha-
via tanto paixão quanto repulsa: enquanto uma
parte do mundo medieval cristão, por exemplo,
nutria genuína admiração pela cultura e pela eru-
dição do Oriente, outra parte, movida por ambi-
ção, agia de maneira selvagem – como “animais”,
na definição de um cronista da época ao relatar o
avanço dos cruzados.
Esse padrão de relacionamento ambíguo se con-
solidaria com a corrida colonial europeia a partir
do século 19, passando pela disputa, especialmen-
te durante a guerra fria, pelas riquezas geradas pe-
lo petróleo, até chegar à abordagem norte-ameri-
cana de promoção da democracia em países opri-
midos e devastados por ditaduras – sempre, como
mostra Frankopan, tendo como leitmotiv a tenta-
tiva de remodelar o centro da Ásia para garantir os
interesses dos Estados Unidos na região.
Hoje, nesse longo processo, assiste-se ao vivo à
reemergência asiática como foco das atenções glo-
bais. “O centro de gravidade do mundo (...) volta
ao local onde esteve por milênios”, diz Frankopan,
razão pela qual é preciso se questionar, como faz o
historiador, se o Ocidente está ciente de que sua
hegemonia histórica pode ter chegado ao fim.

A ASCENSÃO DA


ROTA DA SEDA


O historiador


inglês Peter


Frankopan


analisa séculos


de relação entre


o Ocidente e o


Oriente, tendo


como foco


principal a


economia


Aliás, História


O CORAÇÃO
DO MUNDO
AUTOR: PETER FRANKOPAN
TRADUÇÃO: LUIS REYES GIL
EDITORA: CRÍTICA
688 PÁGINAS
R$ 136,90

5
TRILHÕES DE REAIS
INVESTIDOS PELA
CHINA NA ‘NOVA
ROTA DA SEDA’

Mar e terra. Marco
Polo deixa Veneza
(E) e beduínos no
deserto pintados por
Jean-Léon Gérôme

Comerciante. Tela pintada pelo artista chinês Hong Nian Zhang mostra o capitão Zheng He, da marinha da dinastia Ming, com sua frota de navios mercantes

BIBLIOTECA BODLEIANA DA UNIVERSIDADE DE OXFORD SOTHEBY’S

NATIONAL GEOGRAPHIC COLLECTION

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E4 Aliás DOMINGO, 22 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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