O Estado de São Paulo (2020-03-28)

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 28 DE MARÇO DE 2020 Especial H9


Julio Maria


MV Bill, ou Alex Pereira Barbo-


sa, é um dos mais importantes


quadros do rap desde o final dos


anos 1990, quando surgiu com o


álbum Traficando Informação,


celebrado por ter um dos discur-


sos mais impetuosos e coeren-


tes surgidos na cena. Filho de


pai bombeiro, Mano Juca, e mãe


dona de casa, Dona Cristina, ele


passou a ser chamado Bill ainda


criança e, mais tarde, “mensa-


geiro da verdade” por senhoras


da igreja evangélica local. Cida-


de de Deus é sua casa, tanto que


teve dificuldades em vê-la retra-


tada de forma tão linda estetica-


mente quanto socialmente vio-


lenta no cinema em 2002, por


Fernando Meirelles, ignorando


o que havia de belo na comuni-


dade. “O filme vai ganhar mui-


tos prêmios em festivais e Cida-


de de Deus ficará com o troféu


de favela mais violenta do mun-


do”, disse ao repórter, então no


Jornal da Tarde, em uma entre-


vista de 2002, feita na própria


favela. Agora, ao ver o céu escu-


recer com nuvens carregadas so-


bre o bolsão que abriga mais de


38 mil pessoas na zona oeste do


Rio, Bill agiu rápido.


Assustado com as gentilezas


oferecidas ao
novo coronaví-

rus para sua


temporada


destruidora no


País, de aero-


portos livres


de triagem à au-


sência de um


plano de contingência que deve-


ria existir desde as primeiras no-


tícias, logo depois do carnaval,


Bill viu o vírus fazer o caminho


inverso às lógicas das pragas,


chegando por cima, de avião, pa-


ra descer às quebradas da CDD.


Um dia antes de surgir o primei-


ro infectado do bairro nos regis-


tros no Ministério da Saúde, ele


se sentou e criou Quarentena,


um rap que pede o isolamento


da população sem deixar de inco-


modar o poder público: “Perde-


ram tempo com coisa que não


interessa / Quem tem noção do


vírus tá com medo, tá com pres-


sa, sei / Incompetência vem na


frente sim / Se dependesse deles


a epidemia não teria fim / Presos


na inércia / É
cada um por

si, a cena é es-


sa / O fim de tu-


do para alguns


é quando tudo


começa / Sei,


com povo ga-


do é mais fácil


levar de lambuja / Lavaram as


mãos mas a boca continua su-


ja...”.


Isso foi em um sábado. No do-


mingo, com um microfone e o


computador que tem em casa,


gravou a voz e mandou tudo pa-


ra o produtor Mortão, de Goiâ-


nia. Na terça, a música estava


pronta. Ao mesmo tempo, con-


seguiu um equipamento de fil-


magem com amigos, que o deixa-


ram em sua porta, no bairro vizi-


nho a Cidade de Deus. Ele higie-


nizou tudo, posicionou as câme-


ras e, pela primeira vez, movido


pela urgência de uma população


que tem rappers em considera-


ção mais elevada do que minis-


tros e presidentes, gravou e edi-


tou o vídeo de Quarentena. A edi-


ção e a montagem ficaram com


Rodrigo Felha e Jefferson Teófi-


lo. Bill espera voltar também a


produzir novos episódios para a


quarta temporada do programa


Hip Hop Brazil, que dá espaços


para a produção do rap indepen-


dente, com entrevistas, clipes e


shows. A previsão de exibição do


próximo programa é dia 2 de


maio, às 22h30, no canal Music


Box Brazil.


Sua fala sai de dentro da mais


temerosa realidade dos novos


tempos. “Tem favelas no Rio


sem água, acho isso criminoso.


O vírus já chegou à Cidade de


Deus, mas não sabemos o núme-


ro de infectados porque não exis-


tem testes. As pessoas vão para


as Upas (unidades de pronto-


atendimento), são atendidas e


mandadas para quarentena em


casa. Mas as casas estão cheias


de gente.” No trajeto vertical do
vírus, de cima pra baixo, as pes-

soas se infectaram primeiro na


luxuosa Barra da Tijuca e, logo


em seguida, nas vizinhas Cidade


e Rio das Pedras, favelas onde,


não por acaso, vivem as senho-


ras e os senhores que trabalham


nas casas e nos prédios da Barra.


Bill diz estar surpreso com a


consciência que percebe entre


os moradores. “A maioria está


entendendo que precisa ficar


em casa. Sinto que estão tentan-


do colaborar, acompanhando


as notícias.” E a imagem do pre-


sidente na TV dizendo que as


crianças devem voltar para a es-


cola e o povo ao trabalho? Qual


foi o impacto? “O único impac-


to que senti aqui em Cidade de


Deus foi o da indignação. Não


dá para ir na contramão de uma


ordem mundial. Eu fiquei per-


plexo ao ver aquilo na TV, mas
aliviado ao sair na rua e ver que

as pessoas estavam em casa.”


As pessoas estão ligadas nas no-


tícias do mundo, não são mais


tão manipuláveis. Para ele, as re-


lações de um mundo pós-pan-


demia serão revistas. “Nunca


mais seremos os mesmos. Nos-


sos hábitos de convívio social


vão mudar completamente.”


Uma face que nunca viu de Cida-


de de Deus seria algo que pode


ser chamado nesse contexto de


“bom”. “Acordo cedo com os


pássaros e o galo cantando, sem


sons de tiro, sem sirenes da polí-


cia. As praias estão completa-


mente limpas, parece um des-


canso do planeta.”


Quando fala do cuidado das


pessoas ao não sair às ruas, surge


um novo assunto. Não seria o


tráfico de drogas e a milícia, os


dois poderes paralelos instituí-


dos em bairros onde o braço ofi-
cial não chega? “Eu vi nesses

dias uma apresentadora de um


telejornal mandando um recado


para os chefes do crime. Ela di-


zia: ‘Se vocês têm o comando da


região, então é a hora de exercê-


lo’. Sim, o toque do crime manda


parar e a favela zera tudo. Aqui,


Vila Vintém, Gardênia Azul, nin-


guém anda nas ruas.” Bill tem se


surpreendido também com a for-


ça da comunidade em se organi-


zar, segundo ele, de forma inédi-


ta. “Elas estão arriscando suas vi-


das para entregar cestas básicas


pela comunidade. Eu nunca ti-


nha visto isso antes por aqui. É


uma lição.”


‘AS PESSOAS ARRISCAM AS


VIDAS PARA ENTREGAR


CESTAS BÁSICAS. EU


NUNCA TINHA VISTO ISSO’


1 livro por semana*


QUARENTENA


U


m dos bons livros de 2019,


Arquivo das Crianças Perdi-


das voltou ao noticiário esta
semana ao vencer, em cerimônia

realizada online por causa do coro-


navírus, o Prêmio Folio. O júri reco-


nheceu o romance da mexicana Va-


leria Luiselli, o primeiro que ela es-


creveu em inglês, como a melhor fic-


ção publicada em língua inglesa no


Reino Unido no ano passado.


Arquivo das Crianças Perdidas é um


livro bonito sobre uma família pres-


tes a se desintegrar – uma mulher e


sua filha pequena, seu companheiro


e o filho dele, maiorzinho – que entra


num carro em Nova York e percorre


os Estados Unidos até o Arizona, na


fronteira com o México, para estar


onde os últimos povos livres em todo


o continente americano viveram an-


tes de se renderem e gravar os ecos


de sua passagem por ali e para seguir


os rastros das crianças que tentam


atravessar a fronteira e desaparecem.


Um livro que fala sobre apaches e


imigração, mas mais do que isso: uma


história sensível e comovente sobre fa-


mília, vínculo e cumplicidade. Sobre


estar junto e sozinho ao mesmo tem-


po, sobre querer estar só, mas só encon-


trar sentido no outro. E é, além de tu-


do, sobre encontrar a forma exata de


contar uma história e registrá-la.


Na época do lançamento, a autora


contou que sua vontade era escrever


um romance tentando pensar como a


próxima geração vai começar a articu-


lar esse tempo político muito difícil


em que estávamos entrando e como


ela, em oposição às gerações mais anti-


gas, poderia dar novos elementos às


histórias para a geração seguinte e, por


fim, como essa geração iria recombi-


nar e devolver essa história ao mundo.


Ela disse isso em junho do ano passa-


do, e nem nos nossos piores pesadelos


existia essa pandemia que estamos en-


frentando. Como as crianças estão assi-


milando esse tempo? E como vão con-


tar também essa história no futuro?


MARIA FERNANDA RODRIGUES ESCREVE AOS SÁBADOS

l]


UM RAP ECOA EM CIDADE DE DEUS


MV Bill, uma das vozes mais respeitadas do rap, cria, solitário em sua casa, um manifesto de verdades inconvenientes


VALERIA LUISELLI

Caderno 2 TRECHO DA MÚSICA ‘QUARENTENA’


DOUGLAS JACÓ

Bill. Bill.


Criando Criando


sozinho e sozinho e


em casaem casa


Daqui para o futuro


Romance. Obra é narrada também pelo menino com sua Polaroid


ARQUIVO DAS


CRIANÇAS


PERDIDAS
Autora: Valeria

Luiselli


Trad.: Renato


Marques


Editora:


Alfaguara


(424 págs.;


R$ 74,90;


R$ 39,90 o


e-book)


BABEL


l Com a ajuda da ficção


A TAG lança, dia 5, uma série de 7


minidocumentários com depoimentos


de escritores com o tema ‘A leitura é
a menor distância entre você e você

mesmo. Encontre-se’. A produção já


vinha sendo feita há tempos, mas o


lançamento é oportuno. Participam


Alejandro Zambra, Pilar del Río, Ja-


vier Cercas, Contardo Calligaris, Con-


ceição Evaristo, Ayòbámi Adébáyò e


José Luís Peixoto.


l Em meio à crise


O Conselho do Plano Municipal do


Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas


redigiu uma carta com propostas de


ações emergenciais para tentar prote-


ger o ecossistema do livro durante a


quarentena. Entre elas estão a vincula-


ção da cadeia do livro aos decretos de


calamidade pública estadual e munici-


pal, isenção de IPTU para livrarias


espaços culturais e linha de crédito


com juro zero e dois anos de carência.


“A


Organização


Mundial de


Saúde avisou


Fizeram pouco-caso / chefe de


Estado minimizou / Demorou /


Perderam tempo com coisa
que não interessa / Quem tem

noção do vírus tá com medo /


tá com pressa.


Incompetência vem na fren-


te sim / Se dependesse deles a


epidemia não teria fim / Presos


na inércia / É cada um por si, a


cena é essa / O fim de tudo para


alguns é quando tudo começa


Sei, com povo gado é mais


fácil levar de lambuja / Lava-


ram as mãos mas a boca conti-


nua suja / Alguém avisa pra es-


ses ‘cara’ / Que a gripe é mun-


dial / A cada dia o número de


infectados dispara....
Na favela, pra nós a covid é

diferente / As casas não são


grande e geralmente muita gen-


te / Aglomeração inevitável /


Alguns lugares ainda não tem


água potável


Se cuida aí / Ih, que vai faltar


espaço na UTI”

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