baloiços, nunca perdi por completo a inocência, eu mais interessado com a perspectiva
de andar à roda do que no vitiligo
- Ai sim?
e o meu filho, muito mais velho do que eu, cheio de sobrolhos de censura - Pai
sabendo que se por acaso o médico saísse da sala, chamado por uma enfermeira - Importa-se de vir aqui
porque um doente nos cuidados intensivos ou uma dúvida de um colega ou isso, eu
me acocoraria no banco, a pretexto da radiografia, para uma viagem feliz naquilo,
dançando para um lado e para o outro a fingir-me pensativo, voltando-me para a janela
desta banda e para a porta daquela - Não gosto da mancha no pulmão
e a janela e a porta graves, a pensarem, a minha mulher - Não consegues ficar quietinho?
desconfio que com ganas de experimentar o banco igualmente, a quem neste mundo
não apetece rodopiar nem que seja uns centímetros, quem não guarda a infância na
alma, à cautela, com os turras por todo o lado, regressamos ao arame seguindo um
trajeto diferente sob uma lua muito maior do que a nossa em Portugal, cercada de um
halo de vapor, uma chana onde se ocultavam animais, uma gazela surgiu a galope e
desapareceu num pulo, não bem galope, um salto, dois saltos, imobilizando-se que
tempos de patas estendidas e o focinho lá em cima flutuando no capim, se ao menos a
minha mulher flutuasse da mesma maneira as pedras do rim é lógico que não
conseguiam alcançá-la, prevenia-a - Não desças não vá o rim apanhar-te
porque se a gente não se avizinhar do que temos cá dentro as doenças não
conseguem chegar-se a nós, as luzes do arame ao longe e as lamparinas pálidas dos
quimbos em torno, a certeza que os soldados a dormirem amparados uns aos outros, se
eu fosse turra rebentava aquilo tudo num instante com um canhão sem recuo e dava
com a triste miséria das sentinelas da Pátria, tabiques de madeira, conservas, cães
esqueléticos, grades de cerveja vazias, nem um banco rotativo, nada de útil, o meu pai
a olhar coitado - É aqui que tu vives?
e o porco de amanhã a comer afastando os outros porcos, as pestanas dele, já o disse,
transparentes, uma malha no dorso, os dentes tão grandes, quando o meu filho e eu
regressamos da vila estávamos a chegar ao arame subindo a rampa que conduzia à casa,
o unimogue do capitão à frente com as duas pacaças mortas e o meu sem pacaça alguma
a seguir, disparando uma salva de gê três para o ar, a minha mulher, já vestida, a limpar
a bancada da cozinha em gestos circulares mais lentos que dantes porque qualquer
coisa, ou seja uma pedra que se escapou do rim, a dificultar-lhe os movimentos, os olhos
dela, até poisarem em nós, tão desprotegidos, tão órfãos, a solidão dos doentes
comove-me e assusta-me, até que ponto acreditam em nós, até que ponto sabem que
mentimos, até que ponto compreendem este teatro macabro, esta boa disposição
idiota, esta alegria postiça - Muito bem muito bem