como os pretos ardiam, os cabíris ardiam, um velho a rolar no chão ardia, a minha
filha para o meu filho
- É este ano que finalmente matas o pai que matou o teu pai com a faca de mato?
e não era, o porco sempre, sangue de um animal, não meu, no alguidar, gritos de um
animal, não meus, na agonia, olhos cegos de animal, também não meus, na cave e a
minha filha, claro, zangada com o irmão que não era seu irmão - Não és filho dele quando irás compreender que não és filho dele quando irás
compreender que matou os teus pais?
de súbito muito maior, furiosa, a esmurrar-lhe o peito - Matou os teus pais
e o meu filho calado a pensar, o meu filho - Matou os meus pais?
a lembrar-se das mãos cortadas, das orelhas cortadas, do homem que morava com a
mãe de bruços no chão, metade numa esteira de mandioca e metade na erva enquanto
eu pegava no ombro do miúdo avisando os soldados - Não lhe toquem
não por amor a ele, para garantir a minha autoridade - Não lhe toquem
por egoísmo, por vontade que te recordes sempre do que fiz e não te vingues nunca,
aceites, é a guerra não é, tínhamos ordens não é, o capelão - Meu Deus
a minha prima a estranhar - Ainda te lembras disso tudo?
e quantas vezes à noite continuo a acordar com a metralhadora dos turras na pista e
depois um morteiro, depois um segundo morteiro, a minha nora para o meu filho, a
sacudi-lo na cama - Que barulho é esse que não me deixa dormir?
balas que vibravam arames sobre as nossas cabeças, o psicólogo do hospital no
círculo de cadeiras a espantar-se conosco - Não sinto nada
apesar de um dos meus camaradas para ele a sacudir-lhe o colete - Baixe-se
um segundo camarada também de joelhos, um terceiro, um sujeito gordo, de fato
quase novo, a gatinhar para a pista, um telefone a tocar no corredor que ninguém
atendia, pedindo socorro a quem, chamando por quem, o telefone a suplicar - Não me deixem sozinho
como eu para a minha mulher, sem as palavras mas sabendo que me ouvia - Não me deixes sozinho
e o meu pai apesar de falecido há tanto tempo junto à minha cama indignado comigo - Pareces um garoto que mariquice é essa?
porque eu curvado sobre mim mesmo a sentir a minha urina nos lençóis, quase a
chorar, quase a - Não me matem