António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

jogar-se, esvoaçando, contra o barro de um quimbo, a minha cunhada escondida nas
mangas



  • Não aguento isto
    o meu avô num sopro para a cadela

  • Quieta
    antes que as perdizes notassem, a minha mãe a levantar-se do sofá a caminho do
    quarto com as pedras, ainda mais, palavra de honra, pesadas que a água, a dificultarem-
    lhe o andar, não um cancro, é evidente, pensa-se logo em cancro, não se faz a coisa por
    menos, pedras somente e quanto a cancros a Medicina hoje em dia já não é o que era e
    em muitos casos palavra de honra, para não dizer sempre, consegue, o meu irmão para
    mim

  • Não me ficou quase nada de Angola a não ser explosões e chuva e pretos a correrem
    uma criança sentada no chão que chorava, um preto da Zâmbia, escondido nos
    arbustos, a tentar rasgar papéis e a metê-los na boca e que os flechas apanharam, o meu
    irmão

  • Não me sobra quase nada de Angola talvez uma ideia do pai a dar ordens
    nem fotografias havia desse tempo, o meu pai queimou-as no quintal, de cócoras, a
    remexer as cinzas com um pauzito e a enterrá-las depois, numa delas o meu irmão ao
    colo dele, a encaracolarem-se ambos, ao enegrecerem, até se transformarem numa
    espiral que flutuou um momento e se desvaneceu sobre o muro, lá vai o passado deles,
    lá vai a guerra, lá vai o meu pai novo, magrinho, com um preto ainda mais magro ao
    colo, só ossos acima e abaixo da barriga redonda, a minha cunhada a livrar-se dele de
    cotovelo diante da cara

  • Não me toques
    com medo das doenças que ele tinha de certeza, da sujidade, dos piolhos, a amiga,
    de vestido caro, tentando protegê-la

  • De onde apareceu esta criança preta?
    enquanto o Bichezas, de avental não muito limpo sobre o camuflado, ajudava a
    minha mãe na cozinha depois de encostar o morteiro, de que toda a gente tinha medo,
    à porta do quintal, com a caixa das granadas aberta, que não acertavam em ninguém a
    não ser nele mesmo, o porco, na rua de cima, continuava a comer, se me apanhasse a
    jeito engolia-me, a Fininha, com as duas amigas, lá fora na horta aos cochichos, a prima
    do meu pai no cemitério a encerar os caixões do jazigo com um desperdício e um frasco
    a substituir-lhes as flores da jarrinha, lá estavam o meu avô, a minha avó, o irmão do
    meu pai, um primo de que ninguém sabia conforme não se sabia o motivo de estar ali
    com os outros, quem era, se calhar um engano, um sujeito pertencente à família do lado
    respondendo a outra urna qualquer

  • Estou a acabar um assunto vou já
    a minha mãe surpreendida

  • Tanta gente cá em casa será que vou morrer?
    tanta gente cá em casa, tantos círculos vermelhos nas manchas brancas, tantos
    leprosos a coxearem entre o quintal e a estrada, a comerem raízes, a deslocarem-se de
    gatas, a dormirem no chão sob umas folhas de palma, a conversarem aos gritos e nisto
    o porco de olhos em mim interrompendo a comida, jogar-lhe peras, bananas, pedaços

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