num valado e o condutor quieto, meio dentro meio fora daquilo, e depois eu, esquecido
do cavalinho, cavalinho, a correr também ao acaso disparando em rajada na direção do
capim, e depois o porco não a comer lavadura, a comer-nos, e depois duas mulheres de
camuflado sob bidões de gasóleo que ardiam, uma das morenas e a branca a que faltava
agora uma coxa, e depois o cabo quarteleiro a vomitar, e depois o psicólogo do círculo
de cadeiras do hospital de olhos fechados, e depois um turra tentando escapar-se a
proteger o corpo com os cotovelos, e depois um militar de cócoras no chão, a boca
aberta para nós e as duas palmas no sangue do peito, já sem olhos, já sem lábios, quer
dizer estavam lá mas não estavam, e depois o corpo de um segundo turra a pular sob as
balas, e depois o capitão a gritar ordens a que ninguém obedecia, e depois nenhum
porco a comer, e depois a minha filha a surgir de uma transversal da vila, e depois a
amiga da minha nora a acariciar a minha nora
- Boneca
e depois o meu filho pequeno todo pegado a mim, e depois a terceira mulher de
camuflado de bruços no chão, com o cabelo fora do quico e o tronco torcido, cavalinho,
cavalinho, e depois sacos de areia a escorregarem um a um da caixa da mercedes e a
amontoarem-se na terra, e depois um maqueiro de gatas debruçado para corpos
quietos, e depois eu a pegar no meu filho ao colo para o levar dali, e depois a mãe dele
sem orelhas nem mãos a caminhar para mim, e depois a cadela de regresso à cova onde
o meu avô e o meu pai estavam com uma perdiz na boca e a pupila da perdiz, redonda,
a odiá-los, e depois um último disparo de bazuca a desfazer um imbondeiro, e depois a
minha filha - Já chega
a escorregar para o chão, esquecida de mim sem largar uma rena de pano que
descobriu ontem numa gaveta esquecida e eu abandonado na cadeira da sala
continuando a subir e a descer os joelhos sem ninguém com a minha mulher a fitar-me
calada, cheia de pedras mais leves que a água, Moscovo 10 000 km, Lisboa 10 000,
Lisboa 10 000, Lisboa 10 000, os primeiros cães do arame a aproximarem-se a medo, um
deles detendo-se junto a uma das mulheres de camuflado a cheirá-la, os pretos do
quimbo conversavam baixinho, a minha mulher imóvel no escuro ao meu lado - Não dormes?
eu que não me mexia, não fazia barulho, não se notava se de olhos abertos ou
fechados e no entanto ela - Não dormes?
de anca a roçar-me no corpo - Não dormes?
aposto que sem se voltar para mim e todavia - Não dormes?
sem dar pelo ataque e no entanto - Não dormes?
casados há quase trinta anos, mais de trinta e a voz dela não mudou - Não dormes?
como se nos tivéssemos encontrado pela primeira vez umas semanas antes - Dá-me licença que a acompanhe?