António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

e parece de fato haver de tudo na vida menos um casaco com um botão a cair e uma
rapariga caminhando na minha direção com uma boca decerto muito menos cemitério
que a minha, vi uma que me pareceu ela ao longe e não era mais perto, esta mais baixa,
mais magra, de pernas fininhas, com um olho que se desviava para o centro observando
o nariz, uma segunda rapariga mas loira e nisto a minha mulher a prender-me a mão no
escuro



  • Se te esqueceres de África consegues dormir
    e embora as pedras dela se possam tornar mais leves que a água as minhas não, tudo
    volta constantemente, não me deixa, persegue-me, o capelão veio de um helicóptero
    com o comandante para a missa dos mortos, um Cessna civil levou as mulheres de
    camuflado

  • Tenho a certeza que não sou capaz e não aguento a troça dos outros
    para Luanda em caixões nossos, à pressa, qualquer dia por falta de urnas estendem-
    nos em cima de uma tábua como fazem com os pretos e lá ficamos de mistura com eles
    a engordar a mandioca e a aumentar as hastes de liamba tornando-a mais doce ao
    paladar e multiplicando-nos os sonhos, visitei tantas vezes os meus pais em Lisboa se
    fumava um bocadinho antes de adormecer, a minha mãe contente

  • Estás mais gordo
    e é de matar e ver morrer, senhora, tanto defunto anima, o meu pai com vontade de
    me bater nas costas mas sem me bater nas costas, agitando-se apenas

  • Quando chegares de vez voltamos às perdizes
    apesar da cadela a perder a energia e o nariz, estendia-se no capacho da cozinha,
    indiferente, quase não tocava na tigela da comida, quase não bebia água, se o meu pai
    a chamava erguia um bocadinho o queixo e deixava-o cair, nem um arrepio lombo fora
    quando ele

  • Perdizes
    distante, alheada, quando chegar o frio não aguenta o inverno, morre a olhar para
    nós não zangada nem com pena, uma catarata num dos olhos, o outro vago, esquecido,
    que é do teu galope Boneca, que é da tua energia, foi a minha mãe que a entornou numa
    cova do quintal, o meu pai a abanar a cabeça

  • Não tenho coragem
    naquela cara dele, seca, vazia, que na minha opinião fazia as vezes das lágrimas
    porque não se chora aqui, endurece-se, de palmas abertas para diante e para trás,
    devagarinho, nas calças, a mesma coisa nos funerais das pessoas, a mesma coisa nas
    doenças, a minha mãe para mim

  • Não tens de voltar para África agora?
    e lá estava eu na minha cama da barraca dos oficiais sem olhar as mulheres dos
    cartazes, a casa da aldeia uma lembrança remota mais a esperança de que em janeiro
    se hão de aproveitar os ramos à noite para nos ajudarem a aguentar o frio, o soldado
    que não era capaz deixou de ter vergonha graças a um arame de tropeçar, alguém havia
    de enredar-se naquilo e ninguém o troçou, já conhecíamos intestinos ao léu, já
    conhecíamos fígados, ainda disse

  • Adeus

Free download pdf