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Quando penso que amanhã vão trazer o porco para a adega empurrando-o da
furgoneta com varas e canas, gordo, gordo, a cair no cimento sujo de lama do chão, a
tentar libertar-se das cordas, a tentar morder-nos, a tentar impedir-nos de lhe
amarrarmos as patas ferindo-nos com as unhas, de o pendurarmos do gancho girando a
roldana e principiando a trazer as vasilhas para junto da mesa e as facas enquanto, pela
janela aberta, via a prima do meu pai sair do nosso jazigo depois de o limpar, de cabeça
amarrada num lenço e por cima dela, muito alto, os pássaros da serra, de asas
horizontais, pairando imóveis sobre as mimosas, quando penso na morte do porco eu
que não me recordo quase nada de África para além dos tiros, da chuva, dos relâmpagos
que incendiavam os quimbos, de uma mangueira a desaparecer de súbito e do meu pai,
de camuflado, a partir para a mata, segurando a arma à altura dos rins, de coxas
afastadas, com os cantos da boca para baixo e olhos de repente minúsculos, ferozes
- Ai de vocês se lhe tocam
apesar do inspetor da polícia política - Não o leve para Portugal senhor alferes que ele assistiu ao que lhe fez aos pais e
mais cedo ou mais tarde vinga-se é uma questão de tempo
porque os pretos são como os cães, não esquecem, se fossem como a gente eram
brancos, nem à chibatada se curam, abra uma cova, meta-o lá dentro, feche-a e vai ver
que mesmo assim ele borbulha a odiá-lo, se pudesse vir cá cima com uma catana fritava-
o, eu o brinquedozinho do meu pai disso recordo-me conforme recordo a única cadeira
da sanzala, a dos mortos, colocada no espaço vazio ao centro dos quimbos, adornada
com penas de galo, conchas de vermes e pássaros secos, onde sentavam o cadáver com
enfeites de tinta, colares ao pescoço e pulseiras nos tornozelos, embrulhado em panos
de Congo, de pálpebras abertas, a participar na festa observando tudo, o inspetor da
polícia política para o meu pai, preocupado - Olhe que esse carvãozito há de limpar-lhe o sebo ponha-se a pau
como se alguma vez eu limpasse o sebo ao meu pai e limpar-lho porquê, que tolice,
o cadáver com o qual os parentes, a propósito de parentes a prima do meu pai acenou-
me do lado de lá do muro do quintal ao passar pela casa da aldeia, partilhavam o marufo
e o sangue dos frangos degolados à catana, entornando-lho na boca à medida que
dançavam de modo que até as árvores e o ar vermelhos, o sol vermelho, o rio vermelho
em baixo com jacarés vermelhos, aquecendo a pele dos tambores nas labaredas da
palha para que o chão estremecesse os pés sem necessidade de os moverem e erguendo
os braços tatuados em exclamações de alegria, lembrei-me do canto morno das
mulheres, a prima do meu pai sumiu-se na rua a seguir à nossa dado que morava quase
em cima da estrada onde o meu automóvel coitado devia continuar ainda, e dos gritos
do soba curvado para a terra que os outros repetiam calcando as sombras de defuntos
antigos - Aiué aiué
dos cabritos esquartejados babando espuma e saliva, do fumo doce da liamba, do
gosto do marufo nas cabaças, o meu pai apontando-me com o queixo à tropa - Ai de vocês se lhe tocam