António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Amor
    de ninguém, sem nunca haver escutado

  • Amor
    de ninguém, sobretudo não em África ao prevenir

  • Ai de vocês
    os soldados, quando o vi matar gente desejando morrer, quando o vi olhar a minha
    mãe quase invejando-lhe as pedras, quando ao observar o médico o sabia por vezes a
    desejar o lugar dela, quando ao olhar a minha irmã tinha vontade de abraçá-la, não
    disfarce, não minta, vontade de abraçá-la sem coragem de tocar-lhe porque a cara dela

  • Não se atreva a chegar-se
    desejando que ele se atrevesse a chegar-se e desculpe dizer-lhe isto pai mas com o
    devido respeito você tão idiota, tão tonto, você quase

  • Amor
    a pedir à minha mãe, dentro da camisa de rendas, que o exprimisse por si, você

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    e mais nada, tão aflito, a pisar-lhe o cabelo, a magoá-la, a afastar-se à pressa

  • Volto já
    e sentado na sala às escuras sem coragem de voltar, olhando a rua da janela, as
    lâmpadas, as árvores, você um pobre, você sem ninguém, você aqui na aldeia a olhar o
    porco, não pares de comer, porco, fruta podre, legumes, restos, as pedras do rim todas,
    mesmo as pequeninas e aquelas que não nasceram ainda, a minha mãe preocupada com
    os botões da blusa

  • Se continuo a melhorar ganho peso a mais
    enquanto o meu pai olhava o porco como se o porco fosse ele, a estranhar a minha
    cara, a estranhar os meus gestos, a estranhar a mesa das facas enquanto a sanzala
    continuava a dançar esperando a, tantos parafusos no canhangulo do guia, tantos
    pregos, esperando a morte, Sua Excelência no quarto, a afastar-se de mim sem coragem
    de apagar a luz

  • Quem és tu?
    pronta a defender-se com a almofada, os joelhos, as unhas porque o meu corpo
    pintado, a minha pele de chita, os meus cornos de zebu, o empregado da oficina

  • Devia trazer o carro para aqui não vão roubar-lhe outra jante
    à esquerda do café cheio de motorizadas à porta e homens, um deles de muletas,
    com garrafinhas na mão a olharem para mim sem palavras, as moscas poisam-lhe nas
    feições e não reparam, o meu pai chamou o guia apontando o trilho

  • Onde é que isto vai dar?
    porque não era trilho de quimbo, demasiado poucas marcas de passos e as marcas
    de passos descalças, sem botas, os turras devem ter vindo pela mata como devia estar
    alguém à espera que passássemos para nos atacar por trás, vão gabar-se no rádio que
    nos mataram a todos, Sua Excelência para mim

  • Estás quietinho há que tempos de braço no ar perdeste o apetite?
    por vezes os olhos dela não trocistas, quase ternos, houve inclusive manhãs em que

  • Espera aí
    e me corrigia a gravata antes de eu sair para o emprego

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