António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

a roupa à civil que me custava a acreditar que minha, um aperto nos braços, um
desconforto nas costas, o botão do colarinho a estrangular-me e um sujeito já roxo, que
tive dificuldade em descobrir ser eu, a pedir-me



  • Socorro
    com os olhos aflitos, acabei por solucionar o problema alargando o nó da gravata e
    tornei-me igualzinho aos cambistas da Mutamba, de olho sempre atento à possibilidade
    da polícia, ao abandonar a pensão tão paisano, meu Deus, embora o cabelo curto,
    embora a pele crestada, embora qualquer coisa nos gestos, mais cautelosos, mais
    lentos, que as pessoas não notavam, como se atrás das casas mata, como se nas
    esquinas um canhão sem recuo, como se nas filas dos machimbombos calaches à espera,
    como se minas de quarenta quilos sob as pedras dos passeios, como se armadilhas nas
    esplanadas, à espera, eu constantemente à procura da gê três que não tinha, de ramitos
    quebrados por turras imprudentes e portanto uma saltadora acolá ou um fio de
    tropeçar, a minha mãe, depois de África, curvando-se para levantar a toalha igualmente

  • O que estás a espreitar debaixo da mesa?
    e não ligue senhora, às vezes não estou cá, suspeitas de uma antipessoal que são
    matreiras, ele junto à franja do tapete, a minha mulher com ganas de me pegar ao colo
    que bem lhe sentia no alargar dos braços

  • Meu Deus
    e na chuva das janelas os passos rápidos de um guia ou os do meu filho no arame a
    perseguir uma cabra, fora da pensão, a caminho da Baixa, cheiro de funge e galos fritos,
    as traineiras da baía a partirem antes do crepúsculo, de lanternas acesas, movendo-se
    devagar, como as dos quimbos das fazendas ao aproximarmo-nos delas, uma tarde o
    corpo de um bailundo que a polícia política enforcou numa mangueira por comprar
    peixe seco na cantina da aldeia em vez do barraco mais caro da fazenda, os insultos dos
    sipaios quando a corda o ergueu

  • Filho da puta
    as palmeiras da ilha nasciam uma a uma juntamente com as lâmpadas de quatro ou
    cinco vivendas enquanto eu caminhava ao acaso marginal fora sentindo o cheiro grosso
    da água e o gasóleo dos barcos que se afastavam devagar, a minha mulher para mim

  • Não te dão pena os porcos?
    a impressão que uma raposa lá em cima, junto ao cemitério, a impressão que um
    gineto, pedi a um furriel que tomasse conta do meu filho eu em Luanda, ninguém sabe
    de nós em Portugal, ninguém fala da guerra, finge-se que se esquece ou esquece-se
    mesmo, eu na rua dos bares cheios de mulatas e homens ao balcão, só cotovelos, tão
    desajeitados quanto eu, de nariz no interior dos copos como os burros, atrelados às
    carroças, diante das alcofas, de focinhos no meio da palha a fitarem a gente enquanto
    comiam, uma mulher que desaparecia no fumo do cigarro e surgia do fumo, ao meu
    lado, com mais um anel

  • És oficial a sério?
    que continuavam a nascer no quarto da pensão, a minha mãe para o meu pai a meia
    voz, em Lisboa, descendo-lhe o jornal e fazendo surgir um olho embaraçado

  • Conhece-la?

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