António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

o mesmo de há trinta ou quarenta anos quando entrou com o padrinho num terceiro
andar sem elevador da parte antiga da cidade onde senhoras com pouca roupa, de
chinelos, conversavam umas com as outras em cadeiras desmanteladas sem lhe
prestarem atenção e um sujeito de muletas dormitava a um canto, chamando-as de vez
em quando



  • Marotas marotas
    e sumindo-se de novo, diluído em pálpebras sobrepostas no interior de si mesmo,
    um desses lugares do passado onde há sempre um cachorro que julgávamos perdido e
    uma avó a massajar varizes enquanto o padrinho do meu pai em negociações
    complicadas com uma das senhoras, de aspecto mais benigno que as colegas, que me
    levou para um quartito onde se desenrolava um colchão, com alguma palha à vista,
    assente no sobrado e no qual durante alguns momentos me senti um boneco sem força,
    empurrado e puxado por uma criatura com pressa, que me devolveu ao mundo um
    pouco mais úmido do que chegara

  • Põe-te ao fresco rapaz
    e o meu pai e o meu padrinho de volta a casa em silêncio, vagamente satisfeitos,
    vagamente culpados

  • Mas de quê?
    a recordação do sujeito das muletas acompanhou o meu pai a vida inteira, volta e
    meia, inclusive durante o jantar, abriam-se pálpebras invisíveis nele

  • Marotas marotas
    acompanhadas pela palha de um colchão em ruínas que cheirava a muita gente, o
    meu pai, meio esquecido

  • O que me aconteceu ali?
    a minha mãe para mim, nenhum canhão sem recuo, nenhuma bazuca, encolhendo
    os ombros numa resignação cansada

  • Está a envelhecer não ligues
    porque com o tempo não controlamos as, talvez uma metralhadora, de súbito, entre
    dois troncos mas não teve a certeza, de qualquer modo nenhum disparo felizmente,
    porque com o tempo não controlamos as nódoas, a minha mãe designando o meu pai
    com o garfo

  • Cada vez se suja mais
    deu-me ideia que não com pena, vingada mas que vingança senhores se nunca a
    tratou mal, suponho que se ocupou mais do gato que dela, até peixe lhe estendia na
    ponta do, a metralhadora felizmente sumiu-se, talher, a mulher que ia aumentando os
    anéis no bar de Luanda para mim

  • És oficial a sério?
    provavelmente habituada a sargentos e cabos e eu com dificuldade em ouvi-la por
    causa das conversas, dos risos, do barulho das garrafas e dos copos e de uma emboscada
    lá ao fundo, a seguir ao estrado da orquestra, onde um turra sentado na pista de dança
    tentava conter o sangue com as palmas e os estrondos das gê três se desvaneciam, só
    os estalos dos reco recos da orquestra e a garganta de um mulato a cantar, a mulher dos
    anéis, impressionada, à medida que um soldado puxava uma cavilha e lançava uma
    granada na direção dos lavabos

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