António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

mas atrás dos olhos, distante, isto mais em Lisboa que em África, em África não tinha
tempo de ter pena, a polícia política levou o soba velho da máquina de costura depois
de um ataque ao arame, quando a cabeça de um soldado desapareceu com a
costureirinha a disparar da pista de aviação sobre nós, pensando melhor não foi um
postal que a minha mãe me entregou em Lisboa, amarrotado, úmido



  • Isto é para ti
    foi a mulher dos anéis, quase da idade dela, sentada na cama da pensão a olhar-me
    de pernas afastadas, abraçada à carteira decerto com uma faca lá dentro não fosse eu
    não pagar, mesmo quando estão conosco não deixam de agarrá-la, à cautela, porque
    chegam pírulas da mata e às vezes não são capazes

  • É por tua culpa que não sou capaz
    às vezes zangam-se

  • Não pensei que fosses assim gasta de meter medo
    às vezes tentam bater-nos

  • Cheiras a preta tu
    às vezes encostam-se à janela a gritarem de costas para nós

  • Vai-te embora depressa que não te quero aqui
    receosos que lhes vejamos as caras e se nos viramos para eles à porta estão a chorar,
    os pobres, de repente tão pequenos, dentro do búzio aberto das mãos e nos intervalos
    dos dedos, baixinho

  • Socorro
    com um lábio de criança a tremer, lembro-me de um coronel idoso subitamente
    criança

  • Pegue-me ao colo
    que se me instalou nos joelhos, puxou uma granada do bolso, com o anzol do
    indicador na cavilha a fazer menção de atirar-ma, a guardá-la de novo, a pedir-me
    desculpa

  • Se eu fosse a si ia andando
    e dali a nada, comigo já na rua, uma espécie de estrondo e a polícia militar a correr,
    o médico da família receitou uma pomada contra os maus jeitos para as costas da minha
    mulher

  • Uma pontinha de creme ao deitar e daqui a uma semana está fina
    e não estava, dali a uma semana mais dores, é a vida, sempre pronta a partidas,
    surpresas, a mulher dos anéis para mim, sentada no colchão à espera, ajeitando-se um
    bocadinho na cama

  • Eu vim trabalhar se quer conversa não me importo desde que pague à mesma
    porque demorei a perceber que a maior parte das tropas não quer serviço, quer
    atenção, quer paleio, quer uma chupeta mas tem vergonha de solicitar a chupeta,
    cansado de gastar-se a matar e procura-nos para atenções, festinhas, dedos que lhe
    entalem a roupa, um espaço de silêncio onde possam enfiar todo o lixo da guerra, por
    exemplo a miúda a quem deram a chupar o cano da pistola e sossegou logo, quietinha,
    foi remédio santo, mal apertei o gatilho, querem uma presença que os ajude a dormir,
    dedos devagarinho no cabelo, uma palma na testa, a promessa que se acabou, prometo
    que se acabou, ninguém te assusta mais, quais espingardas, quais pretos, qual obrigação

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