de boca imensa, na direção do espelho, só caninos e gengivas, nem nariz nem olhos, de
língua de fora como as cobras a vibrar, a vibrar, a cabeça anda-me de um lado para o
outro acordando episódios que por lá tenho semelhante a um senhor de idade entre os
mil objetos quebrados de um antiquário, erguendo este, avaliando esse, desdenhando
um terceiro, trazendo um quarto cá fora para o estudar à luz, enganchando os óculos na
testa a fim de o ver melhor dado que o problema da miopia do cérebro mais grave que
o dos olhos e então surgem-me na caixa dos pirolitos, turvados pelo pó do
esquecimento, cenas antigas, cenas próximas, cheiros, sons, lembranças vagas, coisas
que julgava perdidas ocultas sob coisas que não me pertenciam, pertenciam a estranhos
e não sei por qual motivo se encontravam ali um cão chamado Sporting, um cavalheiro
que me tratava de
- Alfredo
eu que não me chamo Alfredo nem sei de Alfredo algum, aguentem um bocadinho,
esperem, surgiu-me uma claridadezita ou aquilo que julguei uma claridadezita e
enganei-me, de fato não sei de Alfredo algum, recordo-me de súbito de nomes
longínquos, Miúdo Malassa, Miúdo Machai, Martelo Chibango, vindos de onde meu
Deus, recordo-me de uma mulher que falava comigo - Kamona
uma outra mulher de que não distingo as feições para a mulher que falava comigo - Euá
descalças, com panos na cintura, troncos ao léu e os dentes serrados, recordo-me de
um rio e de criaturas junto ao rio, sem nariz, sem dedos, a lavarem-se com os cotos das
mãos, recordo-me de galinhas minúsculas, de homens a fumarem cachimbos de cabaça,
do meu pai vestido de verde a agarrar-me, protegendo-me de outros sujeitos vestidos
de verde - Este garoto não matam fica para mim
no meio de pessoas deitadas, quietas, com corpos sem rosto que ardiam no meio da
palha, de criação que ardia, de cabritos, de gemidos não - Ai Carlos ai Carlos
diferentes, do odor de gasolina a que pegavam um fósforo, de um sujeito verde para
o meu pai - Vai crescer meu alferes e vingar-se de si
e nisto não entendendo porquê comecei a chorar sem sentir nada exceto relento de
pólvora, relentos de corpos e eu na poltrona da sala, devo ter adormecido um instante
e como sempre que adormeço a alma a trazer e a levar mistérios que de seguida perdia
sem me recordar deles, Sua Excelência sacudindo-me a meio da noite - O que se passa contigo que não me deixas descansar?
despenteada, furiosa, com um dos ombros à mostra visto que a alça da camisa, por
sinal encarnada, lhe escorregou para o braço melhorando os gestos até as feições se
afogarem de novo na almofada, distantíssima de mim borbulhando um - Preto de merda
que como é natural não ouvi conforme não ouvi há anos - Sempre me juraram que os pretos eram mais bem armados que os brancos mas
pelo menos no teu caso é mentira