António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

(- Já não vejo nenhuma)
enquanto a tropa, vinda de leste, se aproxima em leque do quimbo, com um dos guias
quase na frente e o outro mais atrás, escondidos no capim ou curvados de arbusto em
arbusto, com as granadas no cinto e as espingardas, horizontais, à altura da anca
enquanto um comissário vai recolhendo a mandioca das lavras de apoio e a minha mãe
com orelhas e mãos desaparece com um dos turras na espessurazita da mata, de lenço
na cabeça, descalça como sempre, caminhando nos pés que se assemelham a raízes
gretadas, um vigia de gatas e bochecha encostada à terra



  • Vem gente
    e se sentem os unimogues à espera nos trilhos, o alferes a mandar com um gesto que
    as metralhadoras apontem, as cavilhas das granadas ofensivas puxadas até meio, um
    helicóptero de reserva na chana, o vento contra nós para impedir os cheiros, o primeiro
    cabíri a dar sinal gemendo, enrolado nas patas ao enrolar-se em si mesmo, os homens
    suspendendo as mutopas

  • Tuga tuga
    os tugas que encontrei no barco para Portugal, magros, calados, sem
    compreenderem o mar, que encontrei depois no círculo de cadeiras com o psicólogo no
    hospital, idosos, alguns aleijados, a maior parte sempre em silêncio enquanto eu
    esperava o que me trouxera numa cadeirinha cá fora, os outros

  • O seu preto cresceu
    e o seu preto cresceu de fato, é um homem agora, trabalha num escritório, casou
    com uma branca que o despreza e o troça

  • Escarumba
    ainda não compreende estes cheiros daqui mas já não se lembra de Angola, recorda-
    se mal das cabras degoladas, dos cabíris esventrados, dos gritos não fortes, à beira do
    silêncio e o meu pai a comandar aquilo, o gasóleo, as chamas, os pelos queimados dos
    porcos, dele, de mim, o porco que daqui a nada irei espreitar lá cima, no último dia em
    que come, agora sozinho na pocilga não me olhando sequer, olha-me a filha do meu pai,
    também calada, séria

  • Só queria ver-te adeus
    a diminuir corredor fora a caminho da rua, lembrar-te-ás de mim, esquecer-me-ás,
    não sei, deves esquecer porque tudo se esquece, até esquecemos o que mais queríamos
    lembrar, talvez Sua Excelência me fique na ideia, não sei, empurrando-me de mão
    espalmada no peito, desgostosa

  • Há dias em que cheiras tanto a preto que enjoa
    impedindo-me de lhe tocar, me aproximar sequer, ela farejando o sofá, os lençóis, o
    quarto

  • Que horror
    e a amiga não me apertando a mão, desviando a cabeça porque cheiro mais ainda se
    ponho perfume

  • Não te enjoa o perfume?
    mas o dinheiro que o preto ganha, mesmo pouco, dá jeito e além disso obedece,
    contenta-se, não pretende mandar, não se atreve a zangar-se, se o enxotarmos para a
    cozinha fica por lá num banco à espera que o deixemos voltar, sempre submisso,

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