António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

carícia para a direita e para a esquerda na minha palma, pela primeira vez a sua cara
frente à minha, com uma cicatrizita no canto da boca que me comoveu, tocou-me de
leve no braço e logo a seguir um primeiro turra, um segundo, ambos de calache mas
sem camuflado, descalços, de calções, com um estrangeiro de óculos atrás, uns tantos
mais afastados, paralelos a estes, a minha filha a olhar o porco, de repente séria



  • Pai
    com uma expressão que não lhe conhecia, talvez amizade sei lá, talvez outra coisa
    que prefiro não saber nem falar nisso, para quê, de que serve agora, quantas vezes me
    apeteceu pegar-te ao colo, quantas vezes me apeteceu que me desses um mimo,
    parvoíces assim, quantas vezes sobretudo o desejo de me chamares

  • Pai
    a expressão dela a mudar de repente

  • Vai morrer amanhã
    e grande surpresa de fato, olha a novidade, como se eu não soubesse que ia morrer
    amanhã, qual de nós, o bicho ou eu, é o porco, qual de nós está aqui a espreitar a pocilga
    à tua beira, começamos a disparar para os turras de dois lados da mata, num a bazuca,
    no outro a metralhadora e a gê três de rajada, as calaches quase não cantaram, o canhão
    sem recuo mudo, um mulato tentou duas ou três vezes o gatilho antes de se despenhar
    rodopiando no meio de uma fuga de pássaros, quando o meu avô souber mata-se, o
    alferes paraquedista a acenar-nos à medida que o helicóptero se afastava, um preto
    ainda de joelhos e mãos postas, depois de gatas, depois estendido no chão, depois uma
    espécie de bicho de peluche sem recheio, depois silêncio, depois nada, sandálias ao
    acaso na erva, o brilho de uma chave, a medalhita de um fio de pescoço, o que parecia
    uma pistola, ainda apontada a nós, que desistia a pouco e pouco, não rígida, de metal
    amolecendo, a coronha mole, o cano mole, a sombra líquida, o rádio a chamar a sede
    da companhia

  • Toma nota destas papázinhas
    e por que motivo o sangue não vermelho, escuro, o meu sangue e o sangue do porco
    amanhã não vermelhos, escuros, quando o meu filho me atravessar com a faca e nesse
    momento as pedras, ora aí está, mais leves que a água, muito mais leves que a água,
    flutuando à roda da minha mulher e ela curada, o médico

  • Pode ser pode ser
    flutuando à minha roda e eu morto, a mulher do meu filho para o meu filho

  • Vamos embora daqui
    e como vamos embora daqui se a aldeia se fechou sobre nós, não podemos escapar-
    nos, não nos consentem que escapemos, tudo cessou mesmo por cima da gente, até os
    milhafres da serra aprisionados nas árvores, pobres bichos inúteis, a nespereira parada,
    só sombra, os legumes do quintal quietos, a minha mulher quieta, sentada na sala,
    vejam-lhe o casaco com a borboleta de metal na lapela, façam com que o médico a
    anime

  • Mas que chique
    o médico

  • Tomaram as raparigas de vinte chegarem-lhe aos calcanhares quando a senhora se
    arranja

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