António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

segura a caçadeira apoiando-a num relevo da terra, com o dedo em ambos os gatilhos
a explicar-me



  • Faz-se assim
    dobrado para diante a fixar a linha onde uma espécie de cardos e onde o que parecia
    uma cabeça de pássaro, o meu pai

  • É a fêmea que comanda os outros
    surge de súbito, em silêncio, a observar em torno, direita, quieta, prudente, de bico
    aberto, à espreita e desaparece de novo para voltar com mais duas ou três perdizes, o
    meu pai para mim

  • Tira-se a folga do gatilho agora
    e a arma apontada aos bichos, quieta, aguardando, a cadela direita sobre as patas,
    de focinho estendido, de orelhas para a frente, pronta a correr quando o meu pai lhe
    tocar no lombo

  • Boneca
    quando a espingarda, que oscila um bocadinho a escolher o alvo, se imobilizar de
    repente, quando os ombros dele e o meu pai

  • É agora
    se reunirem de súbito em torno do pescoço, quando as costas não dobradas, eretas,
    quando o cano da arma se transformar num estrondo e penas, e terra, e plantas, e a
    cabeça de um pássaro a tombar, e o meu pai para mim

  • Compreendeste?
    o meu pai para mim

  • Compreendeste bem?
    e a cadela a galopar para a perdiz, a sacudi-la nos dentes, a trazê-la, a poisá-la junto
    de nós, a aceitar a barra de açúcar que o meu pai lhe dá a comer enquanto me rodeia
    os ombros com o braço e me sopra ao ouvido

  • Filho
    num tom que mesmo amanhã, quando me cravarem a primeira faca, não esquecerei
    mais.

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