António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

e há que obrigar os sedutores a horas extraordinárias no emprego, pelo menos com o
dentista, valha-nos isso, aqui comigo, estará deitada agora enquanto o meu pai de
camuflado nos espera na aldeia, aposto que junto ao muro a observar a estrada lá em
baixo perguntando as horas à minha mãe e na estrada apenas um camião de quando
em quando, bicicletas, uma motorizada velha, o meu pai que se preocupava



  • Terá havido algum problema?
    a puxar o quico para a frente de modo que os soldados deixaram de lhe ver os traços,
    apenas os movimentos rápidos da boca

  • Este garoto nem sonhar que o matam fica para mim
    e eu compreendia-o porque o meu outro pai tinha andado na escola da missão agora
    ruínas que o capim
    (e arbustos e árvores)
    derrubava lentamente, até um lagozinho seco havia no centro do claustro, ou seja
    umas colunazecas de cimento a que já faltava o teto destruído por uma bazuca, cacos
    de vasos e um regador de alumínio a um canto, o dentista que arrumava a sua tralha
    numa maleta a fitar o regador amolgado perto da minha mesa de jantar

  • Não fica mal aí
    enquanto me perguntava

  • De onde é que isto veio?
    sem me lembrar logo do claustro, pareceu-me que a chave de Sua Excelência na porta
    e alarme falso claro, não há edifício de meia idade que não goste de partidinhas, falsas
    torneiras abertas, falsos autoclismos no quarto, uma luz falsa na marquise porque luz
    autêntica nenhuma é evidente, o reflexo de um candeeiro da praceta nas traseiras onde
    uma agência funerária, um talho e uma escola de danças orientais, uma ocasião ao
    passar pela agência funerária vi lá dentro, sem que ela desse por mim, uma adolescente
    de braços ao alto a bailar entre caixões e velas, mal me notou pôs-me a língua de fora
    não sei se por eu ser preto ou por eu ser pessoa, acho que por ser preto, vontade de
    perguntar-lhe

  • Já encontraste um preto morto tu?
    não numa sanzala, numa urna, de gravata como vocês, sapatos, mãos brancas na
    palma e escuras no dorso, o nariz achatado, essa espécie de lã do cabelo

  • Não te metem nojo?
    a Sua Excelência metiam ou pelo menos eu metia de certeza, cerrava as pálpebras
    quando lhe tocava e mantinha-se imóvel, um domingo há meses, a seguir a, pediu-me a
    afastar-se para a outra berma do esquife

  • Não te importas de meter um bocadinho de aftershave da próxima vez?
    limpando, julgava ela que às escondidas, o peito e a barriga no lençol e demorando
    séculos no duche, se puxasse as argolas da cortina de plástico encontrava-a a ensaboar-
    se sem fim abrindo-me uma frinchinha irritada de pálpebra

  • Por favor sai daqui
    como se eu fosse um leproso das cubatas meio desfeitas à beira do rio, quase sem
    feições, quase sem pés, que caminham, oblíquos, apoiando-se em cotos, o enfermeiro
    tocava a sineta pendurada num tronco, depositava comprimidos e restos de peixe seco
    na borda da picada e eles a espiarem-no invisíveis, monstruosos, ocultos atrás de raízes,

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