António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

como hei de explicar isto, continuo a gostar dela percebem, ignoro a razão se é que
existe razão ou são necessárias razões mas continuo a gostar dela que gaita, a gostar
dela, a gostar dela se calhar porque sou preto, porque sou preto coitado e porque o meu
pai não é meu pai nem a minha mãe minha mãe embora ache que são, ou seja acho que
são e não são, no caso de serem qual o motivo de eu agarrado a uma mulher morta
estendida na liamba mas talvez não fosse uma mulher morta e eu não a agarrá-la, talvez
tenha inventado, talvez tenha sonhado, talvez outro miúdo, não eu, a abraçar a mulher,
de certeza que outro miúdo a abraçar a mulher e eis o assunto resolvido, é evidente que
outro miúdo e outra mulher e por conseguinte o assunto definitivamente resolvido, o
meu pai e a minha mãe na aldeia ponto final, agora que está tudo certo quem voltar ao
tema é maricas, eu não volto, quero não voltar, não tenho a certeza que não volto,
provavelmente volto, adiante, esquece isso, pede uma bica que te queime a língua e
esquece isso, por causa desta conversa não vi Sua Excelência entrar e como não vi posso
ter a certeza que me acenou adeus, era só o que faltava que não acenasse adeus, claro
que acenou adeus e lhe acenei adeus embora não me lembre, estamos casados há oito
anos e por isso qual a dúvida que gostamos um do outro, se não gostássemos
separávamo-nos e até hoje não nos separamos nem se conversou acerca disso, o café
pequeno, dois clientes a rirem ao balcão com o dono, uma equipa de futebol na parede,
galhardete de um clube num prego, já pouco nítido, já com nódoas, a porta do quarto
de banho com um menino de metal amarelo a fazer chichi para um bacio, unido a ele
por um jato de metal também e o menino de nariz baixo a tomar conta da direção do
jato comigo vigiando alternadamente o cuidado dele e o posto de enfermagem onde
Sua Excelência se sumiu na esperança de lhe perceber a sombra nas vidraças foscas, já
com saudades de ao levantar-me a encontrar na cozinha em roupão a aquecer a cevada,
despenteadíssima, sem maquilhagem, de roupão desbotado e a corda que a cintava a
deslaçar-se devagarinho, uns chinelos meus velhos, com um buraco que mostrava o
primeiro dedo do pé, demasiado grandes para ela, Sua Excelência apenas cansaço e as
rugas amargas da manhã ou seja, numa só palavra, lindíssima, o meu pai para os homens
verdes enquanto Sua Excelência me apertava o ombro



  • Ai de vocês se alguém lhe toca
    e podem não acreditar mas foi bom que me magoasse um bocadito, não me ralava
    que me apertasse o ombro outra vez, que mariquice, qual não me ralava, apetecia-me
    conforme me apetecia que Sua Excelência um

  • Querido
    quase sem mexer a boca, entre dentes, só língua e lábios, de olhos subitamente
    enormes, o teu corpo até que enfim concreto e eu a desenhar-te bisontes na gruta de
    Altamira da tua, desculpa a palavra e por favor não te zangues, não me desprezes, não
    resmungues

  • O que se espera de um preto?
    nem te exaltes comigo, coninha, a mesma onde agora a parteira introduz não sei quê
    para tirar não sei quê, um pedaço de mim ou mais que um pedaço de mim

  • Tudo se paga nesta vida se lhe deu prazer fazê-lo é justo que sofra
    isto num cubículo das traseiras com um Sagrado Coração, por que bulas os Meninos
    Jesus são sempre loiros e os Cristos crescidos morenos é que eu gostava de saber, quem

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