António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

a gente constrói, o que a gente supõe, por exemplo o capitão a esbofetear o soba diante
do povo, cada vez menos povo porque fugiam do arame, um dia nem meia dúzia de
infelizes aqui, nós apenas a perseguirmos um trilho sem enxergar ninguém, uma tarde
uma pacaça a galopar no capim, uma tarde hienas em redor de um veado a puxarem,
puxarem, outra tarde um braço nas minhas costas



  • Sinto nos vossos semblantes
    não, o braço nas minhas costas

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    não, o braço nas minhas costas

  • Amor
    o meu filho para mim, na adega da casa da aldeia

  • Podemos começar daqui a cinco minutos
    com o porco a fitar-me como eu vos fito agora, tentando libertar os tornozelos das
    cordas de modo que tivemos de o prender melhor, lembro-me de chorar da primeira
    vez que assisti, do meu pai substituir um alguidar cheio de sangue por um alguidar vazio,
    de pingos na minha blusa, nos meus calções, nos meus braços, dos gritos que me
    ensurdeciam enfraquecendo a pouco e pouco, dos olhos de pestanas transparentes que
    me fixavam a esquecerem-se lentamente de mim embora continuassem a mirar-me,
    que esquisito estar ao mesmo tempo noutro sítio e aqui, a minha filha a espreitar-me à
    socapa, eu sabendo o que ela pensava sem querer saber o que ela pensava e portanto
    sabia e não sabia o que ela pensava, ou antes não queria saber que sabia, proibia-me de
    saber que sabia, o que acontecerá à casa da aldeia a partir de amanhã, ao cemitério
    onde me guardarão, à serra, talvez sobeje um velho num banquito de largo, em miúdo
    a viúva do ferreiro que morava a seguir à capela, no fim da travessa onde começavam
    os campos, chamava-me sempre

  • Menino
    puxava-me para dentro da oficina, trancava a porta com uma chave enorme

  • Menino
    que girava em estrondos sucessivos

  • Menino
    apertava-me contra si mergulhando-me a cabeça no avental

  • Menino
    enquanto me mexia na barriga, nas costas, no rabo, sufocando-me com os seus
    abraços, observados por uma cadela a um canto, o meu filho vai-me, deitada numa
    manta, aposto que o meu filho vai, o capitão para o soba

  • Desaparece-me da vista
    um cachorro pequeno, claro, que brincasse comigo, a minha mulher

  • Não chores
    e não era por causa da guerra que eu chorava agora, os porcos também lágrimas
    quando já não gritam, uma pessoa chega-se ao pé e lágrimas mesmo apesar de já não
    sofrerem, têm pena de deixar de comer, têm saudades e no entanto, se podem, até os
    filhos engolem, a viúva do ferreiro largava-me finalmente

  • Vai-te embora

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